Malthus e a crise hídrica em São Paulo
por Felipe Milanez para ContaDagua.org
A crise da água está prestes a chegar a proporções catastróficas. E, agora, a escassez deste recurso natural pode resultar em violência, guerras, saques. O desastre humano pela falta dos recursos naturais. É o que diz a prefeitura de São Paulo, de acordo com coluna de Monica Bergamo, na Folha de S. Paulo de 29 de janeiro, com o sugestivo título de: Prefeitura de São Paulo teme violência e saques por falta de água.
No caso de conflitos, os mais atingidos são sempre quem está mais próximo do local — no caso, os prefeitos — ainda que seja ao governador do estado sobre quem deve recair a responsabilidade mais direta no caso. Nesse sentido, diversos prefeitos, e não apenas Haddad, alertam para a explosão de violência em decorrência da escassez, conforme noticiou o Valor: “temem os problemas gerados a partir do racionamento, como o aumento do número de doenças provocada pela água impura e eventuais saques de água pela população desabastecida, com o aumento da violência”.
Acontece que um dos desastres provocados pela crise hídrica tem sido a despolitização do problema. Parece que não causa espanto o fato de a crise ocorrer em uma cidade tropical com alto índice pluviométrico. E a velha questão da turbulenta relação entre população e recursos naturais volta tona. Um longo debate que divide a filosofia, pelo menos, desde o século 18 (já que foi o iluminismo do 17 quem separou gente de natureza).
É que esse argumento provocado pelos prefeitos afetados pela crise da água — a escassez vai provocar violência — segue a tônica daquele construído pelo padre inglês Thomas Malthus. As linhas gerais eram de que o aumento da população leva ao esgotamento dos recursos. A terra não poderia prover o necessário para o consumo crescente: enquanto gente cresce de maneira geométrica, a terra provê em aumento aritmético. Logo, miséria, guerra e caos, eliminando os mais pobres, regulariam o equilíbrio. Uma verdade evidente, e portanto, despolitizada, que constitui a linha geral da catástrofe Malthusiana — agora, pretendem uns, o caso paulistano.
Marx respondeu ao argumento de Malthus. Trouxe mais problemas pra mesa para contrapor essa “verdade evidente”. Problemas sociais, econômicos, históricos. A produção de desigualdades. Ao desconsiderar as relações sociais de exploração e concorrência que produziram fome — em São Paulo, a falta d’agua — , Malthus, assim como a prefeitura de São Paulo, o governo, e grande parte da imprensa, percebem um resultado da operação de leis inexoráveis da natureza. Seria culpa da chuva, ou de um santo (Pedro). Mas não: é o problema da acumulação de capital, e o jogo político construído nesse processo.
É o capitalismo, estúpido, e não, como se dizia no auge do neoliberalismo nos anos 1990, “é a economia, estúpido”.
Apesar de Marx ter respondido, digamos, há bastante tempo, ao argumento, ele se ressignificou e se reconstruiu com o neomalthusianismo. O famoso artigo do ecólogo Garrett Hardin, publicado na Science em 1968, reconstruiu a mesma “tragédia” dos recursos naturais, que chama de os comuns (“commons”, em inglês). Escreveu ele que o “problema” da população e recursos não teria solução técnica, mas precisaria de uma extensão moral — igualmente despolitizada.
O hoje famoso geografo marxista britânico, David Harvey, respondeu a Hardin em 1974, na revista Economic Geography, paper de título “Population, Resources, and the Ideology of Science”. Utiliza novamente Marx contra o argumento neo-malthusiano, e aponta o problema da “ideologia das ciências”, pelo qual ele critica, de forma bastante convincente, a “neutralidade da ciência”.
“Ao fundamentar o problema a partir da superpopulação”, escreve Harvey em minha tradução, “muitos analistas, involuntariamente, fazem um contive à política da repressão que invariavelmente parece estar relacionada ao argumento Malthusiano quando as condições econômicas são tais que tornam esse argumento extremamente atrativo para a classe dominante”.
Ou seja: porrada nos pobres. PM e Rota contra “a violência” (que evidentemente não é a violência da opressão, da exclusão ou da subcidadania, pois essas não estampam capas de jornais). Contra os “saques” — não o do agronegócio, mas o do desesperado em busca de água para sobreviver. Não o saque das mineradoras e das indústrias, mas dos trabalhadores sem água para sobreviver.
É o que se desenha em São Paulo. Esqueça que o agronegócio consome dois terços da água. Que a indústria beba talvez 20%, até 30% em alguns cálculos e períodos. E as residências, menos de 10%. Mas, e ainda assim, se qual residência estamos falando? Devemos esquecer das piscinas nos Jardins, no Morumbi, o banho na calçada, o banho no SUV, os quatro banheiros da casa, mas foque a atenção no fraco chuveiro elétrico da periferia comprado em prestações: é este o elemento “violento” que vai sofrer na mão da PM.
Escassez e violência
Nos anos 1990 (auge ideológico do neoliberalismo), a suspeita de que a escassez de recursos poderia provocar conflitos violentos no âmbito internacional ganhou um novo suspiro, notadamente pelo grupo de trabalho do canadense Thomas Homer-Dixon. Publicou livros, organizou seminários, treinou pesquisadores, e com o alerta de que recursos naturais vão acabar em decorrência do aumento da população, e um Mad Max global vai ser instaurado. Renovou Malthus no seio do neoliberalismo. Propriamente, com a intenção de fortalecer seus argumentos, tratou de sempre deixar de lado o contexto sócio-político, hstórico e econômico de cada caso aonde atribui-se à natureza a causa de conflitos sociais. O trabalho foi influente, e refletia a principal estratégia do governo Clinton para a “segurança ambiental”.
A resposta veio por um grupo de pesquisadores em Berkeley, com xs geografxs Nancy Peluso e Michael Watts. Organizaram um seminário interdisciplinar e depois publicaram um livro, Violent Environments (2001, Cornell University Press), no qual, com fundamento na economia política e relações sociais, respondiam a Homer-Dixon e a administração neoliberal de Clinton.
Em resumo, o trabalho desenha a violência como um fenômeno localmente específico, com origem em história e relações sociais locais, porém, conectado com processos amplos de transformações materiais e relações de poder.
O problema é a democracia e as instituições
Com a crise climática global tendo ascendido, finalmente, à agenda internacional, novamente renovou-se a dinâmica entre população e recursos, com o uso fácil e superficial de Malthus, ou um exame mais categórico, muitas vezes de cunho marxista, levando-se em conta as dinâmicas locais, as relações de poder e as transformações materiais.
Nesse sentido, um projeto europeu chamado Clico (pode ser visto aqui http://www.clico.org/), investigou se as mudanças climáticas poderiam provocar conflitos, especialmente, por problemas hídricos. Os casos de estudo não foram tropicais one há chuva e água abundante (o Brasil tem um quinto da água doce do planeta), mas em torno do mediterrâneo, de clima temperado ou desértico — ou seja, onde a coisa deveria “pegar” em termos “naturais”.
A conclusão, pasmem políticos de São Paulo, é que não foram encontradas evidências de que as variações hidro-climáticas sejam fontes de violência e insegurança.
O problema, escrevem os pesquisadores, é “democracia” e “boas instituições”. Essas sim são as grandes variáveis. Utilizando ferramentas da ecologia política, o grupo de diferentes universidades, coordenado pela Universidade Autônoma de Barcelona, encontrou algo que — isso sim — pode inspirar o debate no Brasil:
“Descobrimos também que os projetos de desenvolvimento em larga escala, liderados pelo Estado, muitas vezes conduzidos em nome da adaptação às mudanças climáticas, terminam por aumentar a insegurança em alguns grupos populacionais, muitas vezes aqueles que são os mais marginalizados econômica e politicamente.”
Transposição física e política
Talvez, com base na experiência relatada nesses casos, o que São Paulo mais precisa, urgentemente, não é da transposição física de reservatórios secos para outros secos, secando ainda mais bacias no seu entorno. Transpor as águas do Paraíba do Sul, já seco pelo consumo exploratório (com 1,7% do volume!), para o Sistema Cantareira (com cerca de 5% do volume!), deve apenas piorar a situação e afetar mais gente e mais o ambiente.
É preciso, sim, uma “transposição política”, com forte impacto nas relações econômicas e de desigualdade social.
Transpor a oligarquia que controla os mecanismos de poder e esgotam os recursos naturais para um mesmo nível de igualdade nas relações políticas da grande população — humana e não humana — que sofre esses desmandos.
Alckmin já declarou que faltariam guilhotinas caso o povo soubesse o que acontece. No entanto, violência é uma péssima forma de transformar o sistema político. O povo deve ser mais inteligente, e menos violento, que o seu governante.
*texto escrito para a campanha Conta d’água, a qual apoio com entusiasmo e sede: ContaDagua.org
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