A respeito de um grilo que atravessou o Rio Grande do Sul

Igor Natusch
A Época Folhetinesca
7 min readFeb 17, 2017
Foto: André Pantoja

Devo dizer que uma das metáforas mais ricas e interessantes sobre a vida que eu conheço me foi narrada por um inseto, cuja incrível jornada eu tive a oportunidade de testemunhar.

Rodoviária de Santo Ângelo, Rio Grande do Sul. Estávamos, eu e a minha namorada da época, aguardando o ônibus que nos levaria a Porto Alegre, depois de passarmos o feriado de carnaval em uma visita às ruínas de São Miguel das Missões. Lembro que fazia calor; sentávamos ambos do lado de fora, já em frente ao local onde nosso ônibus surgiria, as malas aos nossos pés, tentando extrair daquele começo de tarde modorrento um fiapo de vento capaz de nos refrescar.

Não sei até que ponto os grilos são comuns nas cercanias da rodoviária de Santo Ângelo. Tampouco conheço sua disposição de espírito quanto aos seres humanos, embora suspeite que seja de completa indiferença na maior parte do tempo. Seja como for, os grilos revoavam nos arredores, mesmo que fosse apenas começo da tarde — ou justamente por isso, posto que igualmente desconheço os hábitos sociais desses insetos e não sei se costumam revoar à tarde ou à noite, ou mesmo se apenas revoam a qualquer hora e cenário, em todas as rodoviárias de interior do Brasil e do planeta Terra, prestando contas apenas a si próprios e ao impulso vital e inapelável de revoar. E de todos os grilos de todas as rodoviárias nas quais eu tenha esperado um ônibus, seja rumo ao desconhecido ou de volta ao lar, foi aquele grilo específico — um inseto que me pareceu bem nutrido e, levando em conta o que vou relatar em seguida, consideravelmente corajoso — que revoou na direção em que estávamos, ao ponto de quase me atingir na cabeça antes de pousar a centímetros dos meus pés, ao alcance de um chute ou mesmo de um pisão assassino.

Neste preciso momento, em que tento relatar o acontecido da forma mais fidedigna e esclarecedora possível, fico a pensar no que poderia ter sido do restante dessa saga caso eu decidisse, naquele breve instante de indefinição, esmagar aquela criaturinha frágil e acabasse ali mesmo com sua existência. A oportunidade eu tive, disso vocês não duvidem. No entanto, não o fiz — na verdade, tal gesto homicida sequer passou pela minha cabeça, por um instante que seja. Ao invés disso, tive uma outra atitude, que igualmente mudou para sempre a vida daquele bichinho: sacudi o pé, de forma a cutucar suavemente o grilo e, assim, incentivá-lo a voar em segurança para bem longe da minha vista.

Um gesto desastrado, sou forçado a dizer. Pois o grilo, ao invés de salvar-se, ergueu-se em um breve e desajeitado vôo, descrevendo em seguida uma precária espiral descendente e entrando, com absoluta convicção, em um ponto inalcançável da mala de minha namorada.

Explico. Como quase todo e todas certamente sabem, vários modelos de malas de viagem (em especial as com rodinhas) contêm uma espécie de alça retrátil, que pode ser acionada quando a pessoa que a carrega deseja usar as rodas para locomovê-la com maior facilidade. Ela fica na estrutura externa da mala, mas seu mecanismo é discretamente disfarçado por uma fina faixa de tecido, quase sempre da mesma cor da mala em si e que deixa as hastes retráteis invisíveis quando não estão em uso. O motivo da existência desse pedaço de pano é acima de tudo estético, claro, embora possivelmente possa servir a outros propósitos que desconheço. Pois foi na reentrância entre o mencionado tecido e a mala propriamente dita, ali mesmo no espaço onde as hastes se escondem, que o grilo foi acomodar-se após minha inoportuna intervenção. Com a profundidade exata para que se tornasse impossível alcançá-lo — e, ao mesmo tempo, em uma posição tal que, pela firmeza com a qual as extremidades do tecido estavam costuradas na mala, não havia condições de esmagá-lo com um golpe pelo lado de fora, mesmo que quiséssemos.

Perdi algum tempo pensando em como livrar-me daquela curiosa situação. Acionar a alça para dentro e para fora não teve qualquer efeito; dar tapas no tecido pelo lado de fora foi igualmente inútil. Assoprei com força algumas vezes para dentro daquele refúgio, mas não obtive da criatura nenhuma reação mais significativa. Não foram mais do que breves minutos nessa busca, de qualquer maneira, já que logo chegou o ônibus que nos conduziria à capital e tornou-se imperioso o embarque. Carreguei a mala com um misto de constrangimento e cuidado, espiando por vezes para ver se o movimento incentivava meu inusitado caroneiro a desistir. Indiferente ao drama, o auxiliar do motorista tomou a mala de minhas mãos e a arremessou de forma descuidada para o estômago do ônibus — e então estava o grilo, definitivamente, entregue à própria sorte.

Durante a viagem, fiquei imaginando se o bicho resistiria às muitas horas de trajeto — e, caso resistisse, se ainda estaria no mesmo lugar ao final da jornada. Terá algum grilo nascido nos matos de Santo Ângelo realizado, em algum momento, viagem tão longa, em circunstância igualmente estressante como essa? Duvido muito, para ser sincero. Era quase um desbravador involuntário, o Marco Polo de sua dinastia, o primeiro em inúmeras gerações a cruzar distâncias incalculáveis rumo ao completo desconhecido. Era uma viagem sem volta e, por isso mesmo, ainda mais dramática e heroica: nunca mais retornaria aos matagais de sua infância, jamais veria novamente seus incontáveis irmãos e irmãs e, se existe entre esses insetos algo próximo ao amor dos seres humanos, sua criaturinha amada estaria eternamente para trás, sem a chance de um adeus ou explicação. Era até mesmo um tanto inglória a jornada pioneira, pois não haveria jamais quem contasse o eventual triunfo em prosa e verso, nenhuma das vivências e aprendizados que acumulasse seria cricrilada para aqueles que o conheceram no ponto de partida. Era um herói de si mesmo, como todos os indivíduos vivos são nessa maluca viagem pela existência, conhecendo tão pouco quanto todos os demais o destino final de uma epopeia que não pediu para empreender.

E chegou muito vivo a Porto Alegre, podem acreditar. Conferi imediatamente, tão logo recebi a mala de volta: lá estava o grilo, parecendo-me um pouco enjoado e cansado, mas ainda firme e forte na mesma posição de sempre. Confesso que saber disso me alegrou consideravelmente. O trajeto da rodoviária de Porto Alegre até a casa onde minha namorada morava com a mãe era curto, e fiquei o tempo todo pensando na vida cheia de emoções e novidades que aguardava o corajoso grilo em sua nova casa. A cidade podia não ser das mais pujantes em termos de natureza, mas o inseto teria várias pequenas concentrações de vegetação para explorar nas redondezas, o que me parecia uma compensação razoável para tão extraordinária travessia.

Ao chegarmos, fomos recebidos de forma calorosa pelos seres humanos e pelos gatos da família, e quase imediatamente mencionei em voz alta a carona que carregamos por quase toda a viagem de volta. Com um objeto comprido qualquer, cutucamos o grilo por dentro da reentrância e ele finalmente decidiu se mexer, voando de forma desajeitada em direção à cozinha. Sempre arredio, como se vê. Procuramos um pouco, mas foi impossível encontrá-lo — e ainda não tinha reaparecido quando me despedi e fui embora, o que me fez pensar que poderia inclusive já ter ido embora, escapulindo pela janela escancarada como, tenho certeza, os grilos são mais do que capacitados para fazer. Contentei-me com a ideia de nunca mais vê-lo, e cheguei a imaginar transformar a ideia em conto — coisa que nunca tinha chegado perto de fazer até hoje, já bastante tempo depois, quando finalmente escrevo esse relato.

De fato, nunca mais vi o bichinho. Porém, soube de seu destino poucos dias depois: foi encontrado morto em um canto da cozinha, provavelmente caçado durante a madrugada por um dos gatos da casa. Uma morte pela qual ninguém chorou em todo o Universo — mas que eu, fascinado pelas tolas histórias de glória que criei em minha mente, confesso que lamentei um bocado.

E agora me digam se a vida não é exatamente como a jornada desse grilo, desde Santo Ângelo até a morte inglória em Porto Alegre, poucas horas depois de completar uma viagem extraordinária que não pediu para fazer e da qual não pôde se esquivar? Não embarcamos todos nós, tão logo nascemos, em uma viagem maluca e incompreensível, movida por forças tão estupendamente indiferentes a nós que sequer podemos pretender compreendê-las minimamente? Não são nossas histórias de glória e infâmia imensamente diferentes das vivenciadas pelos nossos irmãos e irmãs, mesmo que semelhantes em seus elementos mais básicos — e não está essa diferença, no fim das contas, confinada dentro de nós mesmos, já que ninguém mais poderá compreendê-la de forma tão plena, ninguém poderá extrair de cada evento o que ele traz de transcendente e inimitável?

Quanto do irrepetível e sublime das nossas existências some como fumaça diante da primeira brisa mais forte, sem que nós mesmos percebamos claramente que um dia existiu? E acaso o final dessa epopeia pelo desconhecido caótico não costuma ser tão absurdo e repentino quanto o do pobre grilo, levado sem seu consentimento a um lugar grotesco e absurdo, morto em nome do mero capricho de uma criatura colossal a quem nada fez de ruim? Quem poderá, no tecido aparente dos dias, encontrar mais do que costuras aleatórias urdidas pela jornada implacável do tempo? Não somos nós, quando vistos no individual, contos cheios de som e fúria, narrados por um lunático que grita contra as nuvens — e não é apenas quando enxergamos nossos trajetos à distância que conseguimos neles decifrar algum tipo de padrão, alguma simetria insuspeitada, na qual somos pouco mais que nada e que, ao mesmo tempo, não poderia existir sem nós?

Sei lá. Afirmo apenas, em benefício de todos que aqui estão e daqueles que virão, que um corajoso grilo fez a travessia de Santo Ângelo até Porto Alegre — o que faz dele, até prova em contrário, um dos insetos que mais longe viajou em solo gaúcho desde que o mundo é mundo. Eu sou testemunha dos fatos, e deles faço conhecimento a vocês. Afinal, uma odisseia dessas não pode desaparecer sem que ninguém fique sabendo. Um brinde, amigos e amigas, à coragem, que é sempre a essência do viver. Saúde.

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Igor Natusch
A Época Folhetinesca

Jornalista. Ser humano. Testemunha ocular do fim do mundo.