Manhã de domingo

Igor Natusch
A Época Folhetinesca
5 min readSep 23, 2018
Foto: Ruth Gledhill

(esse texto é razoavelmente antigo. o arquivo menos recente que tenho salvo dele é de 2013, mas tenho absoluta certeza de que é vários anos mais velho — talvez seja do período em que morei em São Paulo, mais provavelmente 2009, mas não poderia ser categórico quanto a isso. não é um texto sobre mim, mas remete a algumas coisas do meu passado, e gosto de revisitá-lo de vez em quando.)

Quando percebeu que não havia mais nada a discutir e que nenhuma palavra conseguiria preencher o silêncio daquela casa, pegou o violão e saiu. De todas as coisas suas que estavam lá, era a única que não podia suportar deixar para trás, mesmo que por pouco tempo. Pegou o violão velho e descascado em um gesto ao mesmo tempo cuidadoso e firme, de um pai que pega o filho pela mão, e saiu para a rua em silêncio, sem dar até logo, sem bater a porta, sem barulhos e sem confusão. Naquela situação cheia de silêncios, sua retirada foi mais um deles; e quando sentiu sobre si o sol daquela manhã de domingo, sentiu-se de certo modo apaziguado, como quem se percebe vazio, mas não recorda o suficiente do que está faltando a ponto de sentir-se incomodado com isso.

O sol estava forte, apesar de ainda ser bem cedo, provavelmente o começo de mais um dia de muito calor. A sensação era revigorante: tinha sido uma noite longa, de muita penumbra e poucas palavras, de sombras movendo-se lentamente nas paredes sem trazer em sua marcha nenhuma resposta ou consolo. Sair daquela casa e encontrar o sol foi como sentir a verdade do mundo sendo restabelecida, e sentiu essa mudança como algo animador e positivo. Não havia muita gente na rua, mas isso era quase bom: aquele momento de irresponsável e temporária liberdade era seu, e assim o sentiu enquanto andava em silêncio pelas calçadas da cidade que despertava.

Não andou muito, na verdade. Assim que viu uma escada que julgou adequada sentou-se, com a naturalidade de quem relembra algo que há tempos não fazia, e acomodou o violão no colo. Testou a afinação, dedilhou dois ou três acordes, mas logo parou. Ficou observando os prédios ao redor, os jogos de luz e sombra causados pelo sol da manhã, a mente distante, os pensamentos mais sensações difusas e distantes do que ideias de fato.

Um pouco à frente, uma parada de ônibus concentrava boa parte da movimentação da manhã, e deixou-se contemplar aquele pequeno desfile de pessoas. Jovens senhores de mochila indo visitar parentes, mães ralhando com os filhos, adolescentes arrastando-se ao final da noitada, idosos passeando ao sol. Homens e mulheres que não conhecia, e que muito provavelmente jamais viria a conhecer. Vida que era alheia a ele e com a qual mesmo assim ele sentia um estranho tipo de cumplicidade, como em um acordo silencioso. A manhã os fazia iguais, todos vitoriosos na tarefa de chegar a um novo dia — e nisso havia, se não alegria, uma espécie difusa de orgulho comum.

Quando cansou de apenas olhar, posicionou as mãos sobre o instrumento e começou a tocar. Apenas acordes soltos no início, enquanto lembrava de tempos passados, quando sentava em escadas como aquela, com violões velhos como aquele, em manhãs ensolaradas como aquela. Lembrou daquela cumplicidade de amigos unidos pelas circunstâncias, pelas mesmas dúvidas e carências, que não tinham nada pelo que esperar e não tinham nada a não ser tempo para gastar. Era mais jovem então, tinha feito menos coisas, mas ainda era o mesmo de hoje, e isso não era bom nem ruim, era apenas um fato como tantos outros. Lamentou por um breve instante não ter quem sentasse ao seu lado naquela escada, mas foi apenas um momento; as notas iam sucedendo umas às outras de modo menos casual, tomando corpo enquanto a voz surgia, baixa, apenas para si mesmo e para mais ninguém. Começou a cantar de um homem que trabalha o mais que pode para continuar sozinho, e sobre como quando a história faz seu giro ela acaba deixando um homem partido atrás de si. Muitas vezes tinha sido assim, e muitas vezes talvez voltasse a ser do mesmo modo; era o mundo, era a vida, e não era cruel nem triste, era apenas o modo como as coisas funcionavam. De qualquer maneira, sentiu-se só, e pela primeira vez desde que saíra para o sol lembrou-se do que tinha deixado para trás.

De novo, foi um sentimento neutro. Talvez alguém pudesse chamar de tristeza, mas não era bem o caso. Já tinha ficado triste demais, por vezes demais, pelos motivos mais tolos e pelas razões mais nobres: agora sentia apenas um incômodo, o sentimento de quem se conforma com algo que não está realmente certo, a melancolia branda das coisas não feitas e que ficarão para sempre como resquícios da memória do que nunca foi. Das coisas que fizeram diferença, mesmo que nunca tenham feito diferença de fato. Quando as luzes se apagavam na sua casa, isso me fazia feliz, cantou ele enquanto pensava nessas coisas. E ninguém ouviu, e não fez muita diferença.

Como você se sente, como você se sente em estar sozinho, ele perguntou a si mesmo. Estava sozinho; havia estado sempre sozinho, na verdade. Ninguém se importava, e não era como se devessem se importar; estavam todos na mesma, sozinhos em si mesmos, irmãos unidos no acordo silencioso dos invisíveis de todos os dias e de todas as ruas. Assim tinha sido ele, desde sempre: um solitário entre as pessoas, alguém que anda sem pensar para onde vai, alguém que sai sem bater a porta e sem olhar para trás. E havia se acostumado a isso, havia se acostumado a nunca se comprometer com nada, a não fazer acordos, sem pessoas que pudesse chamar de amigos e lugares que pudesse chamar de lar. Como você se sente? ele se perguntava enquanto tocava um dó não muito competente. E ele não sabia, na verdade ele não sabia. Em algum lugar da sua mente, sentia que queria saber, que queria ter uma direção, deixar pessoas entrarem no seu mundo, e que tinha tentado isso de forma consciente ou não por um grande número de vezes. Não tinha conseguido, mas ao mesmo tempo não sentia que não tivesse feito as coisas do jeito certo. Como você se sente?, perguntou de novo a si mesmo, quase num sussurro. Não sabia, respondeu de novo a si mesmo. Em sua mente surgiu a certeza de que não tinha nada, que não tinha coisa alguma para chamar de sua, nada com que pudesse contar ou na qual pudesse se segurar. De sua jornada, nada trazia consigo. Mas quando você não tem nada, você não tem nada a perder, cantou. E de alguma forma, foi capaz de sorrir.

--

--

Igor Natusch
A Época Folhetinesca

Jornalista. Ser humano. Testemunha ocular do fim do mundo.