O asfalto, um riacho, duas mulheres

Igor Natusch
A Época Folhetinesca
3 min readMay 31, 2017
Foto: Ricardo Oliveira / Flickr

Na esquina, uma mulher. Negra. Magra, aparentemente desnutrida, com vincos profundos no rosto. Envelhecida embora ainda parecesse relativamente jovem. Roupas que eram quase farrapos, carregando alguns recicláveis em um saco imundo de estopa. Não sou especialista no tema, mas deduzo que o produto da manhã renderia a ela alguns poucos reais, se isso. Agachada estava no meio-fio, contemplando o fio de água que escorria desde a esquina logo acima, água razoavelmente volumosa que descia vindo sei lá eu de onde pelo asfalto áspero da avenida que nunca para e nunca descansa.

Mudei um pouco meu ângulo de visão, chegando a sair da fila do ônibus para ver melhor o que ela fazia. Tinha a mulher consigo dois copos plásticos, um em cada mão, e parecia lavá-los na água que corria no chão, colhendo um pouco de líquido e jogando de um copo no outro, de um copo no outro, de novo e de novo, como quem nunca vai parar. Ou quem sabe como quem não quer parar, como quem encontrasse enfim algo que fazer naquele fim de manhã, uma distração interessante o suficiente para apagar um pouco o despropósito rude dos dias.

Mas não era isso, claro. Depois de ficar trocando a água de copo para copo durante algum tempo, juntou os dois plásticos em um só, colocando-os um sobre o outro, e serviu-se novamente de parte do pequeno riacho a seus pés. Não jogou o conteúdo fora desta vez, porém. Ergueu-se e, com um ar de dignidade ao mesmo tempo dolorida e orgulhosa que até hoje só vi nos olhos daqueles que são muito pobres, saiu caminhando de forma firme e nervosa, bebendo em poucos goles a água que havia recolhido do chão. Tão logo terminou de beber, jogou longe os copos com um gesto quase de raiva, como quem, já tendo usado o recipiente, tivesse passado a nutrir por ele grande desprezo. E foi-se embora rápido, sumiu da minha vista em questão de instantes, os copos brancos descendo avenida abaixo no ritmo da água na sarjeta, até ficarem pobremente retidos nos limites de uma boca de lobo.

Mal tinha começado a digerir o que tinha acabado de ver quando, na esquina, surge outra mulher. Negra. Muito, muito negra e muito, muito bonita. Certamente bem jovem, pouco mais de vinte anos talvez, embora a seriedade de seu rosto quase a fizesse parecer um pouco mais velha. Cabelos trançados, arranjados em tranças vaidosas que escapavam pelo boné e caíam belas e convictas sobre os ombros. Usava o uniforme laranja dos garis, e varria a calçada com movimentos firmes, resolutos e profissionais.

Veio até mim sem me olhar uma vez sequer. Mas não se pense que estava de cabeça baixa ou, pior ainda, que me evitasse: estava, isso sim, concentrada no seu trabalho, infinitamente mais significativo do que os ridículos devaneios de um observador eventual. Ao aproximar-se, fez um breve movimento de corpo, quase um dar de ombros, cujo significado imediatamente compreendi. Saí de forma desajeitada de onde estava, sentindo-me quase envergonhado por estar de pé bem no meio do trajeto que ela varria. Não precisei dar mais que alguns poucos passos, e ela também não precisou de mais do que alguns poucos instantes para concluir sua tarefa naquele pedaço de passeio público. Seguiu varrendo o mundo com dignidade infinita, quase diria com altivez, sem deter-se diante de desconfortos alheios, trabalhando e existindo sem pedir licença uma vez sequer.

No estreito horizonte, surgia o ônibus. Antes de embarcar percebi o homem que fazia dupla com a gari, e pude vê-lo recolher rapidamente com sua pá os copos plásticos, agora quase sumidos na boca de lobo, colocando-os com distraída agilidade no carrinho de metal. Aproximou-se de sua colega, disse algo que não pude ouvir. E então quem desapareceu fui eu, que no fundo nunca tinha realmente estado lá, os degraus do coletivo exigindo meu embarque rumo à próxima paisagem.

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Igor Natusch
A Época Folhetinesca

Jornalista. Ser humano. Testemunha ocular do fim do mundo.