O repórter e o viajante do tempo

Igor Natusch
A Época Folhetinesca
7 min readMay 28, 2016
Foto: Thomas Hawk

“Você estava dizendo que é um viajante do tempo.”

“Bom, sim. É basicamente isso. Os conceitos são um pouco mais complexos que uma simples viagem, mas acho que dá para resumir nesses termos.”

“E que a sua viagem deu errado.”

“Ao que tudo indica, sim.”

“Hmmm, OK. E de onde você veio? Do futuro, imagino. Mas de onde no futuro?”

“Talvez fique mais fácil de entender se eu disser que venho do futuro, mas isso não é bem verdade. Ao menos não para mim. Estou tão confinado ao presente quanto você, mas o meu passado não é daqui, e o seu presente é algo que eu já vi acontecer.”

“Ah.”

“Se bem que, na verdade, não é bem isso também. É mais como um vídeo que já assisti algumas vezes, mas que parece um pouco diferente de como eu lembrava dele. E isso é bem curioso, porque se eu não posso dizer que venho do futuro, também não posso dizer que você vive no passado. Somos dois presentes, no fim das contas: o que estamos vivendo aqui é agora para você e é agora para mim, então como poderia ser qualquer coisa antes ou depois? Não há ninguém que possa olhar de fora e dizer onde a gente está. Mas sim, isso aqui era para ser o meu passado, então o meu presente era para ser o seu futuro. Só que está tudo errado. Não sei o que aconteceu, na verdade”.

“Como assim, errado?”

“O passado que vim buscar é diferente do que eu encontrei aqui. Sei lá, está tudo mais ou menos certo, mas ao mesmo tempo está quase tudo um pouco errado, entende? O que eu vivi ou lembrava de ter vivido é diferente, embora seja tudo muito parecido. Como vou saber que esse seu presente é mesmo o meu passado? Posso ter caído em algum desvio, pego alguma fibra temporal diferente da que eu julgava ser a minha. Ou quem sabe o problema sou eu mesmo, no fim das contas. Esse presente é o meu presente agora, então é claro que não pode ser o meu passado ao mesmo tempo. Ao chegar aqui, eu injetei presente no passado e mudei tudo para sempre. Ou reescrevi tudo, o que dá na mesma para mim ainda que seja completamente diferente. Seja como for, eu fracassei. E agora não posso mais voltar”.

“Como assim? Se você veio, você volta. É só seguir pelo mesmo caminho.”

“E voltar para onde? O mundo até pode ficar parado no mesmo lugar, mas o caminho por onde a gente veio não leva necessariamente ao lugar para o qual a gente quer voltar. Tenho pensado muito nisso. Se quando eu chego no passado eu mudo as coisas porque sou um presente que não existia aqui antes, quem me garante que não acontecerá a mesma coisa caso eu tente voltar para o começo? O que eu era antes de vir já não existe mais para mim, entende? Existe para quem ficou lá, mas para mim já era. Quem sabe o que vou encontrar se tentar voltar? Se eu caí numa fibra errada do tempo — e tudo indica que isso aconteceu — a chance de eu retornar pelo exato mesmo caminho e cair no exato mesmo lugar de onde saí é desprezível, infinitesimal. Melhor ficar aqui, sendo alguma coisa, do que ficar o tempo todo tentando ser o que não sou mais. Talvez eu ainda possa ser um pouco útil por aqui. E nem é tão ruim, na verdade”.

“Bem, se você diz. Eu acho muito ruim. E posso apostar que no futuro era melhor”.

“Não tenha tanta certeza. Era mais ou menos a mesma coisa, só um pouco mais cinzento”.

“Ah, é? Um cenário pós-apocalíptico, suponho. E você veio para salvar a humanidade. Adivinhei? Então me fale mais a respeito, viajante do tempo. Me conte sobre o fim do mundo.”

“Hmmm. Desculpe, mas não há nada que eu possa dizer sobre isso que você não saiba.”

“Ah, não venha com essa. Você veio do futuro, e é claro que não se deu a esse trabalho a troco de nada. Um viajante do tempo que vai ao passado só pode estar voltando porque quer arrumar alguma coisa. Algo que está quebrado no futuro e que só voltando ao passado dá para consertar. Não tem sentido vir para o passado se o seu presente for uma maravilha.”

“Não necessariamente. Você pode voltar ao passado para muitas coisas.”

“Claro. E você voltou para quê, então?”

“Hmmm. Não sei até que ponto você poderia entender plenamente a resposta.”

“Tente.”

“Não posso ir muito longe. Mas acho que é seguro dizer que voltei para recuperar conhecimento. Não em forma de arquivos, mas de vivências, mesmo. Há muita coisa perfeitamente natural nesse presente onde estamos que no meu antigo presente era totalmente fora do comum, ou nem existia mais. Eu sou parte da expedição que voltou a diferentes pontos do que era o meu passado para resgatar parte dessas vivências. O lugar de onde venho está bem mais capacitado que vocês para decodificar essas coisas de forma compreensível, mas nos falta matéria-prima. Viemos recuperá-la.”

“Viemos? Então você não é o único.”

“Claro que não. A expedição é enorme. Mas acho que sou o único que veio parar nessa fibra do tempo, seja antes ou depois”.

“E o que faz você pensar isso?”

“Bom, se houvessem sinais, eu saberia.”

“Ah, claro. Como não pensei nisso antes?”

“É sério. Nenhum de nós passa despercebido por muito tempo. Por mais preparados que estejamos, por mais dissimulados que sejamos, cedo ou tarde vão reparar em nós. Pular de uma época para a outra sempre deixa marcas. A adaptação é bem difícil.”

“Bom, até que faz sentido. É meio que um teatro, no fundo”.

“Mais ou menos isso. É mais como estar no meio de um país novo e ter aprendido a língua natal apenas por livros. Sua pronúncia será esquisita, entende?”

“Claro.”

“Mas é tudo, não só falar a língua. É andar, conversar. Os assuntos que a gente puxa. O modo como comemos, como olhamos para as coisas. É tudo diferente. Logo as pessoas percebem. Por isso tentamos sempre ser muito rápidos no nosso trabalho.”

“E no que consiste o trabalho de vocês? Eu não entendi bem a coisa das vivências.”

“Não posso explicar muito, como disse. Aliás, só podemos ter essa conversa franca porque não tenho esperança de retornar. Isso elimina a maioria dos riscos. Você pode até acreditar em mim, mas quase todos acham ou vão achar que sou louco e ninguém me levará a sério. Isso garante que tudo fique em relativa segurança. Mas talvez algum tenha dado certo, sabe? Algum expedicionário, do meu pelotão ou de algum outro, nessa fibra do tempo mesmo. E eu não percebi. Acho que não aconteceu, mas é impossível ter certeza. E nesse caso, se eu der detalhes demais, criarei sérios problemas. Mas enfim, pense que conhecer as coisas é mais do que ler ou ouvir falar delas. E que se as coisas são muito diminutas, ou fugazes, ou inconscientes, ninguém vai escrever sobre elas em livros de história. É por aí. Mais do que isso, eu realmente não posso dizer.”

“Tudo bem. Então vamos voltar um pouco. Me fale de seu futuro distópico.”

“Hmmm. Achei que eu tivesse deixado claro que não venho exatamente do futuro, ou ao menos do seu futuro. Essa pergunta não faz muito sentido, portanto. Mesmo porque o meu presente anterior não era distópico.”

“OK, que seja. Mas você entende que, se as pessoas vão ler sobre alguém que diz ser um viajante do tempo, elas vão querer algo extraordinário.”

“Desculpe. Não sei se entendo, na verdade.”

“Mas é claro que entende. Um viajante do tempo pode ser algo normal em um mundo onde existem pelotões de viajantes do tempo, mas é bem pouco normal por aqui, onde ninguém que se tem notícia viajou mais longe que a Lua, que dirá de volta ao passado e por aí vai. Para nós, é uma tremenda história.”

“Faz sentido.”

“Só que não adianta eu ter uma bela premissa e não ter a história de verdade, entende? Toda essa filosofada pode fazer sentido para você, mas é abstrata demais para o leitor comum. Precisamos de algo mais vibrante, entende? Um grande acontecimento, um presságio, um aviso de desgraças futuras. Uma tragédia, uma profecia do fim do mundo! Quando será o apocalipse? Como ele vai ser? Você pesquisou antes de vir para cá, é o que você diz. Então você sabe algo que não sabemos e todo mundo quer saber. Diga alguma coisa, qualquer coisa. Fale sobre o holocausto nuclear, sobre uma epidemia terrível, sei lá, invente o que quiser. Diga algo sobre o fim do mundo!”

“Ah. Acho que agora está claro o que você quer.”

“Então?”

“Olha, eu até posso dizer alguma coisa. Mas talvez você não goste muito da resposta.”

“Que é isso. Eu vou adorar a resposta, tenho certeza. Vamos, viajante do tempo: me fale sobre o fim do mundo!”

“Está bem.”

“E então? Pode falar, estou gravando.”

“Na verdade, para ser bem sincero e ir direto ao ponto… O mundo já acabou. Eu venho direto do pós-mundo. E isso aqui é o pós-apocalipse.”

--

--

Igor Natusch
A Época Folhetinesca

Jornalista. Ser humano. Testemunha ocular do fim do mundo.