Passos na chuva: início

Igor Natusch
A Época Folhetinesca
4 min readJun 8, 2017
Foto: Henti Smith

(primeira parte de três)

Foi numa noite de chuva que ele saiu para nunca mais voltar. Lembro muito bem: era uma chuva igualzinha a essa, de gotas grossas e insistentes, chuva que bate no asfalto com um barulho que lembra coisas que já não existem senão dentro de nós. Uma chuva de noite fria, daquelas geladas mesmo. E foi justamente em uma noite como essa, exatamente como essa, que ele calçou um par de botas, vestiu uma capa de chuva por cima das roupas de ficar em casa e saiu. Não sei quando volto, ainda lembro dele dizendo, em voz não muito alta. Mas olha essa chuva, onde é que você vai, ainda perguntei. Vou caminhar, foi o que disse, e então disse de novo Não sei quando volto, e foi em direção à porta sem falar mais nada. Passou duas voltas na chave antes de sair. O último som que dele ouvi foi seus passos sumindo no corredor, rumo às escadas.

Não olhei pela janela, então não sei que rumo tomou.

Desde então, sigo aguardando que retorne. Mesmo quando faz sol, mesmo quando há calor e a luz brilha quase insuportável nas janelas do outro lado da rua. Mesmo nesses dias, sinto que ainda chove em algum lugar, que em algum ponto do mundo ainda é céu fechado, que ainda faz frio em alguma esquina distante. Porque ele segue caminhando lá fora, e a chuva o acompanha onde quer que ele vá; isso eu sei, acima de dúvidas.

Será que ele volta, algum dia?

Quando chove do lado de fora, assim mesmo do modo que está chovendo agora, essa chuva fria que bate no asfalto e faz um som que a gente escuta mais aqui dentro da gente do que em qualquer outro lugar — nessas noites eu fico aqui, sentada de costas para a janela, sem olhar para a porta, esperando ele voltar. Aguço os ouvidos e tento escutar qualquer coisa além. Quero ouvir os passos no corredor, a chave girando na porta que está sempre trancada e que não me animo a deixar aberta. Quero vê-lo usando a mesma capa de chuva, as botas sujas molhando o chão, a voz dele quase um sussurro enquanto diz Eu sei, acabei demorando um pouco, desculpe.

* * *

Deteve-se debaixo da marquise em uma decisão súbita, de improviso. Era estreita: precisou encostar-se de corpo inteiro na parede do prédio, as costas completamente alinhadas com o concreto para evitar que um dos ombros ficasse exposto à chuva agora fraca, mas sem dar sinais de ceder. Não que fosse uma precaução muito útil, já que estava completamente molhado há dias, mas parecia justo que ao menos naquele momento as gotas insistentes deixassem seu corpo em paz.

Chovia há tanto tempo que ele era incapaz de calcular.

Espanou os ombros com as mãos, tentando remover a água acumulada nas dobras da capa de chuva. Deu pequenos chutes no ar, como quem tenta acomodar melhor as botas plásticas nos pés. Removeu o capuz. Tossiu.

Seu lar estava distante. Não sabia mais se estava indo em direção a ele ou afastando-se: tinha andado por ruas demais, esquinas parecidas demais, muitas poças d’água, muitas marquises. Havia andado muito, quase sem pausas: dos lugares por onde agora andava, tudo desconhecia. A única constante era o mau tempo. Sempre o mesmo céu cinzento, a mesma chuva fina e persistente. O som monótono da água caindo nos telhados, nas calçadas. Pouco vento. Nenhum relâmpago.

Onde quer que fosse, a chuva ia com ele.

Tinha saído de casa do modo como costumava fazer todas as coisas: ao sabor do momento, sem planejar nada, atendendo o chamado surdo de um impulso sempre mais forte do que ele próprio. Tinha sido uma semana de alguns gritos e muitos silêncios, de olhares que tudo observavam e muito julgavam, que jamais cruzavam um com o outro. Viu na chuva uma chance não de desforra, mas de limpeza. Uma oportunidade para fugir ao silêncio acusatório e finalmente ter a chance de ouvir os próprios pensamentos. Apenas jogou a capa de chuva sobre as roupas gastas, calçou as botas e murmurou uma despedida pobre, algo sobre estar de saída e não ter hora para voltar. Nenhuma tentativa foi feita para detê-lo. E então ele foi em direção à chuva, ajeitando o capuz sobre a cabeça, fechando o último botão logo abaixo do pescoço, escondendo as mãos dentro dos bolsos enquanto lamentava não ter pego luvas para aquecê-las.

Só mais tarde entendeu que a chuva, na verdade, tinha feito uma armadilha para capturá-lo.

Como voltar?, perguntava a si mesmo. Os ecos da briga terrível já haviam há muito silenciado dentro de si. Sentia que, se reencontrasse seu caminho, a volta ao lar não seria de palavras ásperas e ressentimentos, mas um reencontro suave, de silenciosos pedidos mútuos de perdão. Desejava voltar. Estava, porém, cercado pela estática da chuva; o ruído das gotas contra o asfalto era ele próprio um estranho silêncio dentro de sua alma. Não sabia onde estava. Não fazia ideia de que rumo tomar, qual a esquina correta, por quais ruas seguir. Andava a esmo, buscando uma súbita compreensão que indicasse a trilha de retorno para si mesmo.

Nada havia. Apenas o som fraco e insistente da chuva ao seu redor.

Vestiu o capuz. Olhou brevemente para a rua silenciosa diante de si: janelas fechadas, poucas luzes acesas. Uma pequena cerca protegia os limites de um terreno baldio.

Lançou-se novamente à rua. Em um abraço apertado, a chuva uniu-se a ele, implacável, imediata.

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Igor Natusch
A Época Folhetinesca

Jornalista. Ser humano. Testemunha ocular do fim do mundo.