Frangos e avós

Cozinhando como rito de passagem em pleno curral

Tuliosil

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Tinha por volta dos meus 8 anos quando finalmente fui autorizado a matar um frango para fazer o tradicional prato ao molho pardo.

Você pega a faca e dá com um golpe só no pescoço do carijó, não pode errar, viu?

A primeira dica que recebi de minha vó Léa era bem clara; eu tinha que pegar a faca e decepar o pescoço da ave de uma vez só. Primeiro para não desperdiçar o sangue - que viraria o molho - segundo para não gerar traumas no bichinho - endurecer a carne e torná-la incomível.

Eu ganhei o prêmio - que para muitos pode parecer sadismo - de matar o frango, após muita insistência com a coitada da senhora, ou melhor, em termos da roça, depois de muito aporrinhamento.

Crescer ao lado de uma avó que te ensinava:

Olha só, Túlio, falar palavrão é muito feio, mas quando a gente chega na fazenda, pode falar e fazer o que quiser, tá?. Vai lá, comece a xingar!

Tirava do “rural” qualquer sinônimo pejorativo, pelo contrário, ele era completamente imbuído de sentimentos mágicos.

E não bastasse crescer com ela, eu também atarantava os seus trabalhos, ficava em cima o dia inteiro para ver o que estava sendo feito, curiosidade sem fim.

Depois de muita insistência, acho que comecei a amolar o saco dela para ajudar na cozinha quando ainda tinha uns 6 anos, ela finalmente cedeu e me colocou uma faca na mão.

O pirralho saiu com uma bravura gigantesca, todo cheio de si, foi até o terreiro dos frangos, pegou aquele que deveria ser sacrificado e começou a se preparar.

A ave, muito bem segura em minhas mãos, não parecia entender muito bem a coisa; a minha cabeça, já então um pouco destrambelhada, zunia de um lado para o outro pensando que eu não podia decepcionar a vovó, que aquela era uma missão confiada a mim, que deveria ser muito bem executada.

Segurei fortemente o cabo da faca, imprimindo uma força potencial gigantesca para um trabalho bem feito.

Enquanto a faca descia em direção ao pescoço do frango, eu rezava para todos os santos e deuses, que naquela época ainda acreditava:

Eu não posso errar, por favor, eu não posso errar.Oh,meu Deusinho, não deixa que eu estrague essa chance única.

E foi então que, zaz!

Minha avó, como boa professora que ensina sempre pela prática, havia me dado uma faca cega. Não era maldade, mas o ensinar pelo erro, que só muito tempo mais tarde, eu fui entender realmente.

Bom, não é preciso muito mais do que isso para se inferir que a missão foi um fracasso ululante. Mas foi bem pior.

Na raiva infantil de ver que eu perdera o jogo, que não conseguira cortar o pescoço do frango, emputeci-me e meio que joguei ele pro lado, como que a dizer que não gostava, que não queria mais alguma coisa por pura birra.

O que eu lembro é que a ave começou a correr freneticamente por todo o terreiro, a cabeça tombada para um lado do corpo e do pescoço esguichava sangue loucamente.

Minha vó, impassiva, sem mover um só músculo de cima do tablado em que se encontrava, apenas repetia:

Pega esse frango, menino! A gente vai ficar sem almoço hoje! Pega esse frango!

A criança aturdida corria atrás da ave por todo lado, tentando ser o mais rápido possível, com o pensamento no molho perdido que não poderia ser comido junto ao angu de fubá.

Mas isso não era verdade, enquanto toda essa cena se passava, no fogão a lenha já estava o tacho de frango sendo cozido, já estava o panelão de arroz, já estava a panela de barro com o angu.

Desde então aprendi a valorizar muito mais o ato de contato com meu próprio alimento. Sou onívoro sem a menor dor na consciência. Procuro ingredientes cada vez mais frescos e não tenho o menor medo de meter a mão em vísceras e entranhas.

Aprendi que até para fazer molho pardo, tão tradicional na roça, receita nenhuma ganha de avós e frangos.

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