“O Nascimento de uma Nação” (1915): ódio às claras
Texto originalmente escrito em 25 de agosto de 2015.
A primeira coisa a se reiterar é que esse é um filme extremamente bem-feito; é de conhecimento comum que a amplitude da sua revolução tecnológica é tamanha que ele permaneceu como a experiência cinematográfica mais gigantesca que alguém poderia ter por pelo menos algumas décadas, mas o que não se diz com tanta frequência é que ele é um feito igualmente incrível nas suas minúcias. A montagem até das menores cenas é mais dinâmica e eficiente do que em muitos filmes de ação modernos, a recriação de época é impecável, e a narrativa é construída com confiança improvável para um filme feito lá quando o cinema nem tinha 30 anos. (Eu estou cada vez mais convencido de que longas durações faziam milagres pela destreza dramatúrgica de filmes mudos.) As cenas mais melodramáticas forçam um pouco a credibilidade vez por outra, mas não são, abstraído o racismo cartunesco, distração muito maior que aquelas de tantos outros títulos do início do século. Em termos de confecção, dá bem para ver por que esse filme foi um sucesso financeiro tão grande.
É claro que é difícil abstrair o racismo quando ele é surrealmente exagerado desse jeito, tão exagerado que descambaria para comédia não-intencional não fossem tão palpáveis suas implicações, o que me leva ao outro dado de conhecimento comum a respeito desse filme. O Nascimento de uma Nação é inconfundivelmente um filme-propaganda da Ku Klux Klan, ainda que não tencionasse sê-lo, e sua intolerância escaldante se apresenta de várias formas diferentes: mesmo antes da reflexão lamuriosa sobre as terríveis consequências de se dar poder aos negros, somos agraciados com incontáveis atores brancos em blackface fazendo caricaturas repulsivas tanto de “blacks” quanto de “mulattos”, milícias negras devastando os lares de sulistas brancos para então serem heroicamente derrotadas, serviçais domésticos negros retratados com simpatia por sua obediência, e um intertítulo logo no começo que nos informa de que “the bringing of the African to America planted the first seed of disunion” (literalmente, a trazida do africano para os EUA plantou a primeira semente da desunião). Então começa a segunda metade do filme, e tudo vai de mal a muito, muito pior.
Por mais difícil que seja aguentar assistir tudo isso, parte da razão para ver O Nascimento de uma Nação reside precisamente em sua agenda horrorosa. D.W. Griffith era um desses diretores com a abilidade de expressar exatamente aquilo que querem em cada scena, e aqui ele nos mergulha, com orgulho, na mente de um supremacista branco. É fácil traçar paralelos entre a vitimização indignada que o filme faz dos brancos e o reacionismo mal-disfarçado de tantos comentaristas políticos atuais; mais assustador ainda, Griffith de certa forma desmistifica, e até racionaliza, a conversinha da Ku Klux Klan no contexto da sua visão distorcida da Guerra de Secessão, sutilmente mas solidamente estabelecendo os princípios tácitos que moldaram sua percepção dos negros — sobretudo, que são brutos sem educação que não conseguem evitar abusar do poder se este lhes for dado, e que a coisa mais grandiosa que poderiam fazer com suas vidas é despendê-las a serviço leal de brancos.
Se fosse uma fantasia completa em vez de uma “dramatização histórica”, O Nascimento de uma Nação seria, na verdade, uma história envolvente de uma civilização injustiçada buscando a força para derrotar seus opressores. O problema, claro, é que não é uma fantasia. É um filme ambientado na Terra, meros cinquenta anos antes de sua produção, no mesmo país onde estreou com sucesso estrondoso de bilheteria. Assisti-lo, de certa forma, é ser exposto a uma compreensão mais profunda e perturbadora do racismo do que estaria a alcance de um filme que soubesse que o racismo é ruim. Menos significamente mas ainda com importância em outro contexto, também é um vislumbre dos ideias confusas de seu diretor: embora pareça contraditório que um diretor com ideais tão repletos de ódio pudesse mais tarde fazer algo como Intolerância ou mesmo Lírio Partido, este filme deixa claríssimo que Griffith, assim como todo mundo que se deixou levar pela retórica da Klan, era um ser humano, com uma visão de mundo específica e um senso de certo e errado, que fez questão de pontuar que o problema não eram negros, mas negros com poder — e que teve a pachorra de trançar essa mensagem hedionda com outra maior e realmente válida sobre o horror da guerra.