Dona Eunice

fabrício teixeira
A Minha Gente
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4 min readJun 8, 2020

Dona Eunice assobiava para chamar os netos. Eram três destinos possíveis: a vila em que morava ou a casa de um dos amigos — André ou Jean. O assobio percorria todos os cantos, alto e forte como um assobio para chamar bichos — ou crianças de 11 anos. Teu avô tá chamando, alguém sempre dizia; não, é minha vó, eu sempre havia de corrigir. Na casa dos Teixeira, quem assobiava era a dona Eunice — e todos sabíamos disso.

Minhas avós rivalizavam internamente. Externamente, o inferno eram sempre os outros. A outra avó é que tinha ciúmes. Mas dona Eunice tinha — ou achava que tinha — uma pequena desvantagem: minha vó Wilma morava conosco desde 1994. Então, no “pouco” tempo que tinha com os netos (várias tardes durante a semana e o domingo inteiro), vó Nice não hesitava em nos “comprar” com os melhores quitutes que podia dar. O armário era sempre abarrotado de biscoitos e balas, a geladeira sempre tinha sorvete, Coca-Cola e toddynho; tudo que faz mal e as crianças adoram.

Não era incomum que esses assobios que citei há pouco fossem para que fizéssemos uma pausa para o lanche: pipoca, pizza, cachorro quente, joelhinho de queijo com presunto. Vó Nice cozinhava muito bem, e sabia disso. Empada era, pra mim, seu carro-chefe. Dificilmente — até pela minha posterior transição ao veganismo — hei de encontrar empada de frango tal e qual as que minha vó fazia. Por saber de nossa admiração pelo quitute, sempre fazia um tabuleiro bem servido nos aniversários.

Dona Eunice era boa de garfo também, não se enganem. A frase “Na casa dos Teixeira, quem assobiava era a dona Eunice” inclui o fato de que era ela quem detinha os recordes dominicais de maior prato do almoço. Pra sobremesa, uma saladinha de frutas…com sorvete. E tudo regado a uma cervejinha. Ô mulher pra gostar de uma cervejinha.

E se podemos dizer que minha vó tinha um dom, era para o buraco. Das minhas lembranças de sua casa, nenhum domingo passou sem que uma mesa fosse posta, com quatro cadeirinhas para a jogatina. Ela era presença cativa na mesa, os outros que se virassem; meu pai, minha mãe, meu avô, Gil e dona Yolanda — amigos da família, e qualquer outra pessoa que se oferecesse para jogar. Não sei se existe um recorde no Guiness Book para pessoa que tenha o maior número de baralhos em casa, mas afirmo e dou fé que minha vó deve ser a segunda colocada, e que perde por muito pouco.

Para ilustrar o vício — além de um troféu na estante, conquista de algum campeonato, lembro que ela e meu avô foram ao oftalmologista para que ela fizesse os exames de vista rotineiros (coisa de um olho ferido por um caco de vidro, uma longa e antiga história). Na hora de entregar os exames, a médica desafia “Dona Eunice…a senhora sabia que não tem mais visão NENHUMA no olho esquerdo?”. Meu avô olhou sem entender. Minha vó se limitou a rir, em parte sem graça, em parte debochada. Depois, nos confidenciou que “se o Affonso soubesse, ia ficar implicando comigo por ir jogar buraco”.

A propensão ao drama, presente nas avós, era vívida também em dona Eunice. Todo dia ligava para saber dos netos, do filho, da nora, da minha outra vó, do meu tio e do Bidu (nosso cachorro, e um tipo de terceiro neto). Quando estávamos há muito sem ir à vila, o puxão de orelha era inevitável. “Esqueceram onde eu moro?” era o campeão, seguido de perto por “Não têm mais avó não, boneco?”. Eu, sem graça, falava “ô vó…bença! Essa semana eu vou aí ver a senhora, pódeixá!”.

Quando perdeu o filho — o segundo filho, dona Eunice baqueou. Baqueou mas não caiu. Era forte e teimosa, como boa descendente de portugueses. Quando meu avô se foi, o prognóstico dos menos providos de fé na matriarca anunciavam que “ela não vai conseguir viver sem ele, tadinha”. Tadinhos…esses não a conheciam direito. Dona Eunice era apegada aos netos, aos sobrinhos, e à vida. Em quase 30 anos, poucas vezes eu vi uma pessoa tão apegada à vida como vó Eunice.

Nos últimos dois anos de vida de minha vó, fomos melhores amigos. Visitas diárias tornaram obsoletas as suas ligações. Eu nunca mais “esqueci que tinha avó” e fiz questão de mostrar pra ela que ela tinha os netos. Domingo de futebol, então, era imperdível. Embora vascaína, gostava de assistir a qualquer jogo que a TV exibisse. Aproveitou as festas em família e as visitas dos sobrinhos para sair da dieta — talvez o maior desagravo da sua velhice — e tomar uma ou duas (ou dez, se a deixassem) cervejinhas.

Nos deixou no apagar das luzes. Lutou pra ficar aqui até o último minuto. Personificou a resiliência por 89 anos e esticou a vida um pouquinho para comemorar o aniversário de meu irmão. Depois se foi. Amou enquanto viveu; e vai viver pra sempre enquanto estivermos aqui para amá-la. E eu nunca mais vou esquecer onde ela mora, porque agora ela mora dentro de mim.

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fabrício teixeira
A Minha Gente

músico, comunicador social, produtor, cronista, quadrinista e suburbano