Dona Wilma

fabrício teixeira
A Minha Gente
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4 min readJun 1, 2020

As minhas saídas de casa vinham acompanhadas sempre da mesma frase: “vai com Deus e com Menino Jesus de Praga!”. Mesmo sem nunca ter pisado na República Tcheca — ou quase nunca sequer ter saído de Olaria, Dona Wilma era infalível nesses votos de acompanhamento. Devota de Nossa Senhora de Fátima, não recomendava a santa para me acompanhar, no entanto. Talvez o menino Jesus tcheco fizesse, por idade ou travessura, as vezes de melhor acompanhante.

Conversar com ela era sempre muito divertido. Além do senso de humor peculiar para uma senhora nascida em 1929, Wilminha — que também atendia por Wilma, vó e véia — era afiada em suas respostas. O pensamento rápido e o extenso vocabulário de palavrões só perdiam para sua propensão shakespeariana ao drama. Pois bastava que minha mãe, sua caçula, colocasse os pés na rua, lá ia Dna Wilma sacar o telefone, ligar para sua lista inteira de contatos memorizados e dizer “Cristina saiu pra bater perna na rua e me deixou aqui sozinha [ainda estávamos eu e meu irmão em casa] com a pressão alta. Ela não liga se eu morrer!”.

Como todo idoso, Wilma antecipava dia após dia a sua morte. Desse ano eu não passo foi a frase mais ouvida nas festividades de ano novo da família desde que achei de me entender por gente. Minha vó guardava também uma das mais comuns características das velhinhas suburbanas; era fofoqueira que só ela. Não importa se fulana se separou do marido, se o filho de beltrana estava usando tóchico, ou se aquele garoto de cabelo comprido é bicha; a rede de informações de Dona Wilma fazia a KGB, a CIA e até o MI6 com seus zero-zero-setes parecerem amadores.

Wilma tinha vocação para o futuro. Era uma velha que sabia ser velha, e adorava fazer planos. Não invejava a juventude e nem fazia morada em um passado glorioso. Só quando falava de papai. Meu bisavô era um de seus grandes heróis. As histórias variavam de “Papai, no domingo, mandava matar um porco inteiro e fazia pra gente” até “Papai era amigo do Getúlio”. Sim, minha vó carregava essa outra marca das velhinhas suburbanas: uma paixão inexplicável (ou nem tanto) pelo ex-presidente Getúlio Vargas.

Dona Wilma amava os filhos, amava os sobrinhos, amava os irmãos — os 19 que teve; mas, sobretudo, amava os netos. Fellipe, Fabrício e Leandro — ganhou um desses a cada três anos — que, com o tempo e a senilidade tornaram-se Cosme, Nélio e Beto (nomes dos respectivos sobrinho, irmão e filho). Coube a mim, aos 20 e tantos anos, aprender que dali por diante eu seria Nélio. E fim de papo. Era o dia inteiro chamando pelo Nélio. Como eu amava ser “o Nélio”.

Porque era eu botar os pés em casa — de uma das saídas que ela certamente reprovara — que ela se sentava na cama para me atualizar dos últimos acontecimentos de Olaria, como um jornal do bairro. “Ô Nélio, tua mãe saiu e me deixou aqui passando mal sozinha!” (Editorial); depois vinha algo como “Eu vi ali no repórti que tão sequestrando um monte de gente e vocês ficam na rua!” (Página Policial); “Nélio, teu irmão comprou um saco de biscoito e não me deu nenhum! Eu nunca vi isso! Pão duro igual ao teu avô!” (Coluna Social).

Dona Wilma exerceu por mim a função jornalística em Olaria. Ela foi a minha fonte segura de notícias inseguras e de irrelevância nacional. De uma época em que Fake News era fofoca e não fazia esse estrago político que faz hoje. E ela me deu tudo o que pôde: bicicleta, máquina fotográfica, carinho, computador, esporro, sopa de ervilha, abraço e coca-cola. Quando descobriu que eu iria cursar jornalismo, exigiu apenas que eu não fosse esses homi que sobe o morro pra entrevistar bandido.

Em época de eleição, era sempre a mesma história: político é tudo ladrão, Nélio! Adorava o Sérgio Cabral — que, convenhamos, sempre fez sucesso com as velhinhas por andar bem arrumadinho, e o César Maia. O César Maia ia passando e eu mandei você, pequenininho ainda, chamar ele. Aí você gritou ‘teda maia! teda maia!” e ele veio e falou com você. Pede pra ele te pegar no colo agora — e ria. Adorava contar essa história do meu inocente primeiro contato com a política.

Quando ela decidiu ir embora — porque ela gostava de fazer o que queria e quando queria, ela resolveu ir em 12 horas. Sobrou um último aperto de mão, sem palavras. Eu não estava preparado, confesso…25 anos não é tempo suficiente para te preparar para isso. Aos 25 anos, voltei a ser Fabrício. Se eu pudesse escolher, seria Nélio por muito, mas muito mais tempo…

Dona Wilma deixou esse plano sem as pompas que merecia pela vida de luta que levou. Não era do tipo que dizia “não quero ninguém chorando no meu enterro”. Queria sim fazer falta, e viveu pra isso. Cumprida a missão, foi se encontrar com seu papai, com meu vô Nolasco e com tantos irmãos e amigos que haviam ido antes dela; talvez pra avisar “tá chegando uma velha difícil de lidar aí, hein!!”. Tenho certeza que foi com Deus — e com o tal do Menino Jesus de Praga.

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fabrício teixeira
A Minha Gente

músico, comunicador social, produtor, cronista, quadrinista e suburbano