Seu Affonso

fabrício teixeira
A Minha Gente
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5 min readJun 15, 2020

Alfaiate de profissão, meu avô Affonso adorava cantar. Participou de programas de calouro ainda jovem e me contou com orgulho da vez que disputou um concurso vencido por ninguém menos que Cauby Peixoto. O setlist de seus “shows” na vila onde morava continha Roberto Carlos, Luís Miguel, Agnaldo Timóteo — ou o Rayol, juro que não me recordo, e bastante Julio Iglesias. Tudo isso enquanto cosia vestidos e calças. Era um alfaiate-crooner romântico, enfim.

Gostava de filmes e livros de suspense. Procure um fã de Sidney Sheldon maior que ele e falhe miseravelmente. Toda sexta, ia até o velho que vende livros na feira — uma entidade suburbana, e comprava uma quantidade razoável de livros; Harold Hobbins, Irving Wallace, Agatha Christie, e até arriscava um Dan Brown ou Carlos Ruiz Zafón de vez em quando. Na febre de um livro que gostasse muito, mal esperava eu chegar em sua casa e jogava pra mim dizendo “você gosta de suspense? — ele sabia que sim — Então leia esse, que você vai gostar”. Foi assim com uma série de livros que marcaram a minha adolescência como O Beijo da Morte, O Reverso da Medalha, O Elixir da Vida Longa, O Caso dos Dez Negrinhos, entre tantos outros.

Um dia, mais afoito que o normal, me entregou um livro de capa branca com as bandeiras norte-americana e soviética; Irving Wallace: A Segunda Dama. Antes que eu perguntasse, ele me falou “eu quero que você leia esse livro e me fale o que você acha do final”. Eu li, reli e li mais duas vezes (re-re-re-li, talvez) e isso me rendeu horas incalculáveis de lanches e conversas sobre a trama, em como ela parecia com o autor fulano ou beltrano, e como isso daria um bom filme. “Na qualidade de um 007”, ele afirmara.

Affonso era apaixonado por Eunice. Acho que sempre foi, aliás. Não consigo imaginar meu avô vivendo sem minha avó ao lado dele. Foram 62 anos de casados, uma rara “Bodas de Alecrim”. “Pra ela passou rápido, pra mim é uma eternidade!” ele dizia, pra fingir que não aguentava mais; ela fingia que ficava brava, mas nenhum dos dois enganava ninguém. Era amor em sua quintessência. Nos almoços de domingo, a implicância era certa. Ele a atiçava, e ela respondia com um “vai-te-a-merda-Affonso!”. Meu avô a repreendia “Eunice, olha os modos!” e ria, orgulhoso da missão cumprida.

Raramente falava palavrão e mais raramente ainda deixava que eu ou meu irmão falássemos. No lugar de porra, usava um pitoresco pomba. Era em Valença, na casa da prima Zilá, que ele abria o seu baú secreto de baixo calão. Foi já velho que vi, embasbacado, meu avô falar pela primeira vez um puta que pariu, por conta do frio interiorano. Mas era só pisar novamente em Olaria, que ele voltava à sua finesse habitual.

Não ligava pra futebol, mas se dizia vascaíno — talvez por causa de meu pai ou de sua ascendência portuguesa. Fazia vezes de sommelier de Coca-Cola, e argumentava veementemente que “essa da garrafa de vidro pequenininha é muito melhor que as outras”. Amava um bom sorvete também, comia um pote inteiro se deixassem, e sempre falava pra minha vó, quando essa ia ao mercado: “traz sorvete pros meninos!”. Talvez, por meninos, quisesse dizer meu irmão, eu e ele.

Quando perdemos meu pai, seu Affonso tornou-se recluso. Continuava lendo e vendo seus filmes de suspense, tomando sua Coca-Cola e amando sua Eunice. Mas a mudança se tornara aparente. Parou de costurar — o que fazia muito bem, e até mesmo de cantar — no que também era bom. Por dias, sua diversão era esperar minha vó — vinda de uma das suas tarde de jogatina na Tijuca — no portão. “Olha lá a Eunice como vem, se agarrando no muro” ele dividia comigo a preocupação. “Qualquer dia ela cai, já falei pra ela”. Nunca se opôs a suas saídas. Entendeu que ela precisava disso. Que ela soube seguir, quando ele não.

O Alzheimer pegou meu avô numa esquina da vida. De um dia para o outro — ou o que parece ter sido — começou a esquecer datas, filmes e histórias. E começou a repetir histórias. E aí começou a esquecer onde morava. E aí começou a esquecer de mim. Em uma das nossas longas conversas num final de tarde, ficou me olhando, pensando de onde conhecia aquele garoto. “Você tinha que conhecer meu neto. Vocês iam se dar bem”. Eu ri. Depois eu entendi. E aí não ri mais. Quando perguntei se ele não sabia quem eu era, um leve e envergonhado balançar de cabeça entregou. “Você lembra um pouco meu filho”.

Mesmo sem lembrar de mim, nunca deixou de me tratar bem. Continuou me vendo abrir o portão da varanda e dizendo “Olha ele aí, Eunice! Não disse que ele vinha!”. Acho que no fundo, saber é mais sobre sentir do que sobre se lembrar. Na mesa do café, entre errar o manuseio dos talheres e não lembrar se colocou ou não açúcar, sempre repetia as histórias da sua vida e terminava dizendo, quase que como um suspiro: “Nós tivemos uma vida muito boa né, Nice?”.

E mesmo essa vida boa da qual ele nunca reclamou tentou por várias vezes derrubar o Seu Affonso. Até que ela conseguiu da maneira mais literal: com um tombo. Que resultou em um fêmur fraturado, seguido de uma infecção hospitalar, seguido de um coma induzido, que não teve sequência. Dia 31 de dezembro de 2016 a família foi avisada que Affonso não ia mais cantarolar Julio Iglesias na sua máquina de costura; nem veria o próximo filme de 007; não leria mais Sidney Sheldon e nem esperaria sua esposa no portão.

Seus livros foram doados, suas roupas foram doadas e o suporte da máquina de costura virou mesinha de canto. A cama de casal foi trocada por uma de solteiro e a vida foi se adaptando lentamente sem a cordialidade e doçura daquele vô. Eu, que me sentava na cabeceira oposta da mesa de jantar, sigo vendo os filmes de suspense e lendo os livros que a gente gostava, e dizendo “meu vô ia se amarrar nesse”. E é a essa memória que eu brindo — com uma Coca-Cola da garrafa pequena de vidro, é claro.

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fabrício teixeira
A Minha Gente

músico, comunicador social, produtor, cronista, quadrinista e suburbano