E depois do Corona, batemos no fundo

Emanuel Eduardo
A Montante
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8 min readApr 20, 2020
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TL;DR (isto é grande demais e não me apetece ler)

  • Esta é uma situação de saúde pública, mas também de economia global e nacional
  • As PMEs portuguesas dificilmente conseguirão subsistir à crise de consumo e às dificuldades de laboração — o que leva a despedimentos em massa
  • O Estado Português não terá capacidade de suster os incentivos já aprovados (lay offs e linhas de crédito) juntamente com o acréscimo no número de pedidos de subsídio de desemprego
  • Esta crise vai ser certamente pior que a de 2008 e o FMI já teve um aumento de pedidos de ajuda.

As notícias e o impacto

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Os jornais diários estão inundados de notícias sobre o Coronavírus. Tanto quanto os nossos WhatsApps o estão de memes e de vídeos que se propagam mais rapidamente que a doença, agora que estamos (quase) todos fechados em casa.

Não há muito que se possa dizer sobre a doença que não sejam apenas updates ao que já foi dito. E por isso faz sentido não só falar nela, mas também nos impactos que ainda nem começámos a equacionar.

O primeiro grande impacto e aquele que efectivamente alterará (se já não alterou) a nossa identidade colectiva é o mais visível — é a noção partilhada do que é um cenário onde as compras mais básicas e cotidianas são limitadas ou extintas; do que é um cenário onde se pede que toda a gente trabalhe a partir de casa sem que alguma vez nos tivéssemos perguntado que trabalhos seriam passíveis de serem realizados nos confins das nossas salas, quartos ou escritórios improvisados; do que é lidar com toda uma população infantil que, de um momento para o outro, deixa de passar uns 70% do seu tempo fora de casa; do que é o tugaísmo mais puro — “Futebol, Fátima e Família” — estar em suspenso.

A vida mudou drasticamente para muita gente. Possivelmente, algumas mudanças ficarão depois de tudo voltar ao “normal”.

Lavar as mãos tornou-se algo muitíssimo mais viral e norma do que alguma vez o tinha sido e ainda bem. Cumprimentar as pessoas do nosso jeito latino — abraços, beijos e um belo de um aperto de mão — pode nunca mais voltar ao que era, infelizmente. Tenho as minhas dúvidas que andar de máscara cirúrgica na rua vá pegar moda deste lado da Europa, mas somos capazes de tudo.

Algo que ficará connosco muito depois do Corona e dos seus efeitos sociais serem assimilados, é o seu impacto na economia.

A Economia da coisa

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Sim, vamos falar sobre economia — de uma forma leiga e fácil de perceber, que eu não sou nenhum expert na matéria (e isto conta como o meu full disclaimer, já agora).

Para percebermos o total impacto que o Corona vai ter na economia, precisamos de concordar em algumas coisas basilares:

  • A larga maioria dos pequenos e médios negócios dependem necessariamente de ajuntamentos de pessoas, sejam elas clientes, funcionários ou outros
  • Qualquer negócio sem rendimentos regulares sobrevive ou cortando custos, ou usufruindo de créditos/investimentos, ou usando fundos próprios (maneios, capitais de emergência e afins)
  • Trabalhadores representam um investimento da empresa em que se pressupõe um custo — salário, contribuições ao estado, etc. — em troca de valor acrescentado — o valor que o trabalho das pessoas aporta à empresa/cliente para o qual trabalham
  • Quase todos os negócios estão dependentes de uma Supply Chain (basicamente uma cadeia de fornecedores e/ou distribuidores)
  • O Estado (Português, mas discutivelmente todos os outros também) não têm capacidade de sustentar uma economia parada

Agora que temos estes pontos assentes, e sem os quais não podemos formular qualquer tipo de acção ou plano, começa-se a tornar bastante óbvio o derradeiro impacto do Corona.

O impacto imediato, obviamente, é o impacto na saúde pública onde muita gente terá complicações e/ou morrerá. É um facto, infelizmente.

E o distanciamento social deveria ser obrigatório e é a melhor arma para que o número de mortos reduza drasticamente.

Para ler melhor sobre a importância e as implicações do distanciamento social aconselho uma leitura mais profunda nestes artigos Medium — link e link.

O segundo impacto, que chegará mais cedo ou mais tarde — e para algumas pessoas já chegou, enquanto que para outras só chegará depois — é o total e completo colapso da economia global.

O que é que isso representa?

Pequeno contexto:

Em 2008 os mercados globais caíram a pique. A melhor explicação do que se passou, para a maioria das pessoas, pode ser vista no filme “The Big Short” (está no Netflix, façam favor de ver e estarem atentos).

Simplificando, esta caída deveu-se a políticas de crédito e endividamento que não estavam minimamente baseadas na realidade.

Pessoas sem qualquer tipo de possibilidade para comprar uma casa de tamanho médio tinham várias de tamanho grande. A juntar a isso, toda a engenharia financeira para que tudo desse lucro aos grandes bancos.

Isto era a realidade americana e, não tendo à partida qualquer relevância com a portuguesa, todos sabemos que o que se passa nos mercados americanos tem repercussões globais.

A realidade portuguesa era um pouco diferente, mas não muito. Na nossa não só as pessoas viviam um pouco acima das suas possibilidades, como o próprio estado tinha graves ineficências e viva muito acima.

Nos anos que se seguiram a 2008 Portugal teve, com um esforço hercúleo dos seus cidadãos, uma recuperação notável.

Temos a maior carga fiscal da história (leia-se estamos muitíssimo perto do limite do que o estado consegue arrecadar dos seus cidadãos) e algumas das ineficiências foram — muito está ainda por fazer, eu sei, e todos sabemos que a corrupção ainda é notória — limadas.

É preciso notar também que a recuperação teve uma ajuda extraordinária — turismo, muito turismo.

Na eventualidade de termos uma nova crise de 2008 em que as pessoas “apenas” não tinham dinheiro para gastar, estaríamos em maus lençóis.
Na certeza de termos uma nova em que não só as pessias não têm dinheiro para gastar, como nem as empresas nem o estado o conseguem ter — estamos mal.

Muito do que fizemos para nos livrarmos da de 2008 não aliviou com o tempo, e não conseguimos arrecadar muito mais.

Basicamente, temos um país que já opera muito perto do seu limite do que é a capacidade de gerar riqueza.

Juntemos agora os tais pontos basilares com que concordámos há pouco.

Todos os negócios (e não falamos aqui em empresas, porque isto é sistémico) que dependam de ajuntamentos de pessoas vão, naturalmente, perder a sua capacidade de subsistir.

Não vai haver pessoas que comprem o seu produto, não vai haver fornecedores que lhes vendam a sua matéria prima, e provavelmente já não haverá funcionários para ligar as partes.

Um exemplo, simplificado ao máximo:

Imaginemos um restaurante de nível médio com 10 funcionários. Este nosso restaurante servirá umas 100 refeições diárias a um preço médio de 15€ a uma margem de 50%, ou seja custa-lhes 7.5€ cada refeição preparada.

Contas rápidas dizem-nos que o restaurante factura 7500€ por dia, ou 22500€/mês.

Os 10 funcionários (a um salário médio de 1000€ brutos), representam um investimento mensal de perto de 20000€, pelo que ficamos com 2500€ que têm que pagar contas correntes, utensílios, materiais, etc.

Agora imaginemos que este nosso restaurante deixa de servir as 100 refeições diárias e passa a servir apenas 30.
Pelas mesmas contas, o restaurante passaria agora a facturar 225€ por dia, ou 6750€/mês.
Os mesmos 10 funcionários, só por si, arrasam por completo as contas, por isso o restaurante é obrigado a aderir ao lay off.

Mesmo assim, os 30% que são suportados pela empresa representam 6000€/mês.

Ou seja, o restaurante passou de dispôr de 2500€ para 750€ por mês para pagar tudo o que sejam contas correntes e não descriminadas.
Ou, pior ainda — para pagar os novos custos de embalagens de take away e delivery.

Por mais que estes apoios sejam extraordinários na motivação e no capital aplicado, a verdade é que mesmo com eles muitos negócios não conseguirão subsistir.

Está tudo mau… Mas e soluções?

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Aí é que está o gato!

Todas as medidas que o Governo apresentou são um balão de oxigénio num país que começa agora a ter que pagar contas asfixiantes.

E convém não menosprezar que são bem vindas por todas as empresas que delas beneficiem.

Também convém referir que são um penso rápido extremamente caro. E que a factura vai ser paga por todos nós, mais cedo ou mais tarde, possamos pagá-la ou não.

É ridículo ter o discurso do Bolsonaro ou do Trump, cada um com a sua versão de que devemos enfrentar o vírus com os negócios abertos para não prejudicar a economia. Mas também não devemos descartar a preocupação de quem se vê a braços com a decisão de ir à falência ou despedir uma larga parte dos seus colaboradores.

Ou a preocupação de quem não vai ter dinheiro para compras no supermercado, quanto mais para pagar créditos, rendas, contas, etc.

UPDATE: Rendas terão um pacote de medidas já anunciadas

As propostas nacionais são, francamente, positivas e de um esforço gigantesco, cuja factura vai sair pesada.

Mas e as propostas europeias?

Bom, uma das propostas mais mencionadas (e menos viável) seria a emissão das chamadas “Coronabonds” — títulos de dívida partilhada europeia.
O grande problema está no “partilhada” e no facto de estes instrumentos serem de uma complexidade tal que muito dificilmente estariam prontos atempadamente.

Infelizmente ou felizmente, dependendo do país, estes títulos não deverão acontecer tão cedo.

Outra das possibilidades é o MEE (Mecanismo Europeu de Estabilidade) que tem já uma verba considerável para ajudar os países europeus.
Posto isto, mesmo essa verba poderá vir a ser francamente insuficiente.

A terceira grande opção é um novo resgate / empréstimo do FMI. Mas com a incapacidade de pagamento que falámos acima — a carga fiscal já estar no limite do comportável, a dívida pública estar acima dos 100% do PIB, etc. — muito dificilmente saíriamos de um círculo vicioso. A Grécia estava na mesma situação na altura de 2008 e todos sabemos o quão difícil foi.

Então, não temos soluções?

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Não temos muitas…para já.

No estado de calamidade global não seria de estranhar um pequeno reset à economia numa escala também global.

Esse reset poderia significar um perdão de dívida a nível mundial. Teria que ser algo acordado mutuamente entre todos os estados afectados pelo Corona, o que basicamente significa um esforço a nível mundial.

Não é assim tão provável quanto isso, mas nos dias que correm nada o é.

As outras possibilidades são uma variação das apresentadas acima. Misturadas com uma boa dose de fé que não levarão a novos colapsos económicos — como que réplicas após um sismo.

E agora?

Para já, o mais importante é assegurar que as populações se mantêm saudáveis e que a força laboral se mantém assegurada.

Quaisquer que sejam as medidas ou as soluções tomadas, todas dependem de uma população viva e activa.

Depois, é tentar minimizar os riscos económicos imediatos sem descurar a capacidade de resposta a longo prazo.

No futuro a longo prazo, estamos todos a jogar à futurologia e nós portugueses, como sempre, nos desenrascamos!

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Emanuel Eduardo
A Montante

I write stuff. Oh, and listen to music and watch movies and eat chocolate and design things and… Yeah, that!