A fratura do mundo*

Flávia Cera
a nuvem
Published in
2 min readAug 23, 2019
Pripyat

Um poema sempre nos confronta com um impossível. A versão mais conhecida é certo saber e desenvoltura sobre a impossibilidade de dizer tudo, de dizer o todo. Um poema está, certamente, muito mais perto do resto que da completude. Mas esse impossível também aponta para a impossibilidade da reparação de um sentido, para o impossível de restaurar o fio perdido de uma história rompida. Isso porque o poema tem uma posição diante da língua que é de invenção. Não se trata, então, de reparação, mas de partir de um lugar de fissura — fissura do mundo, fissura da palavra -, onde germina uma língua, sempre outra. Sua forma e sua força são inseparáveis da fratura do acontecimento e o seu tempo será sempre de urgência, de emergência, de irrupção.

É isso que podemos ler no poema Pripyat de Guilherme que dá corpo à presença insondável do fim de mundo dessa cidade fantasma, vizinha à Chernobyl, evacuada após o desastre, poucos dias antes da inauguração de um parque de diversões. Esse lugar grande e colorido, que suscita o assombro e o encanto infantil, ressoa na morbidez da paisagem implacavelmente branca. Sua paz tão inquietante quanto inútil suprime o ruído da vida humana sobre um tempo que se condensa no irreparável. Nada será como antes de Chernobyl. É desta e nesta fratura que o poema se escreve como se expandisse os limites territoriais dos efeitos simbólicos da silenciosa contaminação radioativa nos colocando como testemunhas. Afinal, estamos debaixo do mesmo céu.

Creio que esta seja uma das maiores forças do poema de Guilherme: fazer presente esse tempo, esse mundo inenarrável. Não para imaginar nele uma vida possível fora da história, nem mesmo para fazer falar os mortos, mas sim para nos deixar ver que habitamos o mesmo mundo que as crianças fantasmas que povoam Pripyat, essa infância congelada do mundo, marcada pela urgência do abandono, por uma ruptura no fio da vida. Daí a importância de um poema que faz vibrar som e silêncio numa língua inventada de restos que, entre o delírio e o sorriso, lança perguntas incontornáveis sobre as formas de habitar o mundo.

A força do poema encontra seu bom lugar na delicadeza deste formato artesanal feito com palavras que escorrem, que se cruzam e se sobrepõem lembrando que para falar de Pripyat, ou ainda, para falar qualquer desastre, é preciso compor de novo os traços das letras que dispomos, é preciso um exercício de leitura para esse ilegível. Esse exercício está posto também no traço suave dos belos desenhos que ilustram o poema. Eles inventam uma história infantil de fantasmas ao mesmo tempo que não perdem de vista que este é, também, um poema de fantasmas infantis para a história.

*prefácio ao livro de Guilherme Gontijo Flores, Pripyat, que saiu pela Contravento Editorial.

--

--