“iDisorders?”

Considerações preliminares sobre as adicções eletrônicas na era da cyber-imersão

Adriano Aguiar
a nuvem
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7 min readAug 21, 2019

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(Este texto foi modificado a partir de um trabalho escrito originalmente para a Jornada de Cartéis da EBP-RIO em julho de 2012)

Diferentemente de outros discursos que aderem entusiasmados ou constatam impotentes e “desbussolados” a desarticulação da ordem simbólica e o esfacelamento dos semblantes tradicionais no mundo globalizado, a psicanálise de orientação lacaniana soube dar um passo além no diagnóstico do mundo dito “pós-moderno”, ao reconhecer nesta desarticulação da ordem simbólica a instituição de outra ordem.

Miller, seguindo Lacan, pôde mostrar que no mundo contemporâneo, assistimos a uma desarticulação da ordem simbólica, mas esta desarticulação é efeito da instituição de outra ordem, ainda que se apresente de forma dispersa e desordenada.

Nesta nova ordem que se materializa com a globalização, Miller reconhece a estrutura do nãotodo lacaniano, pois se trata justamente de um Outro constituído pelo declínio da função de exceção dada pelo Nome-do-Pai.

Este Outro nãotodo, teorizado por Lacan sobretudo em seu Seminário 20, se apresenta como disforme, disperso, inconsistente, sem limites e sem fronteiras.

Com o Nome-do-Pai em declínio vemos a ascensão do objeto a ao zênite social. Vivemos assim uma época em que o real do gozo predomina sobre o ideal e a normatividade social se impõe não mais pela disciplina, mas pelo modelo da escolha e do espetáculo.

Mais-valia de gozo ou de eficiência que procuramos extrair da superfície corporal sempre conectada aos gadgets e às drogas inventadas pela aliança do capitalismo com a ciência.

Goze! Consuma!

Na teoria lacaniana da hipermodernidade, proposta por Jacques-Alain Miller, o predomínio do mais-de-gozar sobre o Ideal implica numa supremacia do imperativo superegoico articulada pelo próprio discurso capitalista.

Numa espécie de curto-circuito, o mercado ilimitado e guloso alimenta e é alimentado pelo supereu: Goze! Consuma!

Um estudo realizado pela empresa de cartões de crédito Visa com jovens entre 13 e 18 anos de vários países da América Latina mostrou como os adolescentes costumam gastar seu dinheiro. Entre os brasileiros, 83% afirmaram gastar tudo que têm no curto prazo, geralmente em compras por impulso.

Lacan no Seminário XVII faz a seguinte metáfora sobre aquilo que no desejo materno pode ser percebido como devorador pelo infans:

“O papel da mãe é o desejo da mãe. É capital. O desejo da mãe não é algo que se possa suportar assim, que lhes seja indiferente. Carreia sempre estragos. Um grande crocodilo em cuja boca vocês estão — a mãe é isso. Não se sabe o que lhe pode dar na telha, de estalo fechar sua bocarra. O desejo da mãe é isto.”

O declínio do Nome do Pai na cultura faz com que o sujeito consumidor fique mais suscetível a se fazer devorar pelo Outro. Aqui o Outro não temperado pelo limite do Nome-do-Pai é a grande boca consumidora do Mercado, que faz do consumidor o próprio objeto consumido. “Todos consumidores!” = “Todos consumidos!”

Uma charge divulgada no Facebook durante o encontro da Rio+20 explicitava esta lógica de modo muito claro: Num primeiro quadrinho aparecia um governante falando à multidão do alto de um palanque: “Quem quer viver em um mundo melhor, mais harmônico e sustentável?” (Todos levantam as mãos entusiasmados). No segundo quadrinho ele diz: “Quem está disposto a abandonar este modelo de consumismo desenfreado para alcançar isto?” (Todos abaixam a cabeça, impotentes e resignados).

Fonte: Facebook do Lute cartoonista

O próprio planeta está sendo consumido a passos largos, mas é como se soubéssemos que nada conseguiremos fazer para impedir nosso ímpeto de consumirmo-nos até o fim.

Vivemos em um mundo em que o trabalho silencioso da pulsão de morte permeia todo o tecido social, nos arrastando em direção ao pior.

Toxicomania Generalizada

Neste sentido a psicanálise contraria as coordenadas do empuxo ao consumo no mundo contemporâneo, pois é o único discurso que permite ver que o próprio gozo é tóxico, como diz Mauricio Tarrab (1).

Há algo de tóxico no gozo e em sua promoção desenfreada nos tempos atuais.

Neste sentido, podemos dizer, como propôs Ernesto Sinatra, que vivemos numa época de empuxo à Toxicomania Generalizada (2).

Pensar numa toxicomania generalizada, neste sentido é ir mais além da toxicomania, para pensar os sintomas que decorrem do empuxo ao gozo autista do consumo.

A sociedade do consumo é uma organização social inteiramente voltada para fazer com que um objeto do mundo, um objeto da cultura, tome o lugar do vazio de gozo do ser falante, que passa a gozar com estes objetos um gozo que tende, cada vez mais, a não passar pelo Outro.

Rumo à era da cyber-imersão

Outro dia fui à casa de um amigo que havia comprado uma televisão dessas novíssimas em 3D e me mostrava entusiasmado os games de última geração que ele havia comprado.

Para meu espanto soube ali que cada vez mais os jogos eletrônicos são feitos para serem jogados por muitas horas seguidas, e são desenhados para uma perspectiva de “primeira pessoa”, convocando o jogador a uma imersão completa naquela dimensão.

De fato, ao tentar jogar aquele “game” com os óculos 3D, percebi que você perde totalmente o contato com o mundo ao redor e “entra” no ambiente virtual do jogo. O jogador corta sua conexão com em torno e se deixa aspirar para dentro da tela.

A tecnologia 3D (que em breve estará em pleno vigor com a popularização das tecnologias de Realidade Virtual) busca fazer com que você vivencie a experiência de ser sujeito fora de seu próprio corpo.

Não sei se vocês podem captar o que estou dizendo se apenas viram filmes em 3D no cinema.

Nos filmes em 3D, geralmente temos a experiência tridimencional, mas a perspectiva ainda é de terceira pessoa. Assistimos a cena que se passa na tela em três dimensões, no entanto nós mesmos estamos fora da cena.

No Game, pelo menos neste game que eu joguei, a tela não é um objeto externo que você vê, ela é a própria realidade na qual você está imerso numa perspectiva de primeira pessoa.

O jogador é incluído na cena, ele vê a cena em 3 dimensões, mas como sujeito da cena, não como observador externo.

Trata-se de fato de uma imersão no ambiente virtual com importantes efeitos sobre a economia de gozo dos sujeitos, como Miller bem detectou em suas observações sobre o filme Avatar, que foi o primeiro a surgir com a nova tecnologia 3D:

El cine siempre le ofreció al espectador identificarse, « Avatar » explora un más allá del cine. No se trata solo de identificación, siempre puntual, basada en un rasgo singular, sino de una inmersión psicosomática en un universo. (…)

Los adolescentes se enorgullecen de decir que vieron « Avatar » 2, 3, 5, 10 veces…Vuestro ojo está subyugado, sobreexcitado, y goza tanto más intensamente cuanto que vuestra cabeza está puesta a dormir. Cuando el goce del ojo es tan intenso, se vuelve adictivo. (…) La humanidad se entrega con abandono a esta nueva embriaguez. (3)

Fonte: Unplash — Alex Ware (@alexbeware)

“iDisorders”

Os cientistas já se mostram preocupados.

Uma reportagem que saiu na revista Época há 2 semanas alertava para o perigo do vício e da dependência gerada pelos smartphones.

Uma pesquisa do órgão regulador de telecomunicações do Reino Unido, a Ofcom, sugere que 60% dos adolescentes se diz altamente viciada nos uso desses aparelhos, a ponto de comprometerem atividades da vida diária.

O caso da garota americana Taylor Sauer, de 18 anos é trágico, mas emblemático. Em janeiro, ela dirigia numa rodovia interestadual que liga os Estados de Utah e Idaho quando bateu a 130 quilômetros por hora na traseira de um caminhão. Taylor trocava mensagens com um amigo na dose de uma a cada 90 segundos!

Mas “dose” mesmo são as metáforas usadas pelos cientistas para entender o fenômeno: de acordo com a reportagem, cientistas do Instituto de Informação e Tecnologia de Helsinque, na Finlândia, afirmam que dispositivos eletrônicos como os celulares geram a sensação de prazer para o cérebro porque ele se sente recompensado a cada novidade recebida.

“Cada mensagem é um pacotinho de prazer”. A descarga de uma substância estimulante para nossos neurônios, a dopamina, encarrega-se de gerar a sensação agradável, dizem.

Já o psicólogo americano Larry Rosen, autor do livro iDisorder (4), sobre vício em tecnologia, diz que a doença é mais preocupante em adolescentes, pois segundo ele, como o amadurecimento cerebral acontece em etapas e a última parte a maturar é o córtex pré-frontal, que seria segundo ele diz, a região do cérebro responsável pelo autocontrole:

“nos adolescentes esta “essa parte do cérebro funciona como um fio desencapado”, diz o psicólogo cientista.

Prolifera-se então toda uma clínica do consumo. São os AA, os NA, os TCC, os MADA os DASA e por aí vai. A lista é interminável, porque é correlata dos produtos que se fazem de semblantes do objeto que falta ao sujeito e que são, ao mesmo tempo produtores do mais de gozar.

Como afirma Tarrab (1), a orientação lacaniana sustenta que a relação com o consumo não tem sua causa no próprio consumo. Trata-se então de verificar se é possível, a partir da experiência da adicção, chegar à questão do sujeito, que é anterior ao objeto da adicção e para o qual este é uma resposta.

Trata-se de verificar em que medida é possível, a partir disso que rechaça o inconsciente, produzir o sujeito como resposta do real.

Referências Bibliográficas

(1) Tarrab, M. Mais-além do consumo. In: Revista Curinga, 20, nov 2004.

(2) Sinatra, E. La toxicomania generalizada y el empuxe al olvido. In: Mas allá de las drogas. La paz: Ed. Plural, 1999.

(3) Miller, J-A. Entrevista sobre o filme Avatar, publicada em 25/02/2010 N°1953 Le Point.

(4) Rosen, L. iDisorder: Understanding Our Obsession With Technology and Overcoming Its Hold on Us. New York: St. Martin’s Press, 2012.

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