O trauma na sociedade dos objetos

Marcelo Veras
a nuvem
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6 min readAug 31, 2019

Da culpa à angustia, e retorno

Uma das maiores cisões do freudismo ocorreu precisamente quando Otto Rank publicou seu livro O traumatismo do nascimento, em que considera este traumatismo o substrato último da vida psíquica ou, em sua expressão, o “núcleo mesmo do inconsciente”. Podemos cotejar esta obra, que data de 1924 e, por conseqüência, marcada pelo pós-guerra, com o texto de Freud O mal-estar na civilização, de 1929. Constatamos duas diferentes versões da crítica ao hedonismo que florescia na época em que os dois textos foram escritos. Este hedonismo dominou o pós-guerra, esvaziando o sofrimento humano de qualquer sentido. Conhecemos o ponto de vista de Rank no último capítulo de seu livro, intitulado A ação terapêutica.

Sua proposta é uma ação terapêutica visando abolir a contingência do nascimento, promovendo a reconciliação do trauma inerente ao nascimento com a vida civilizada. O método consistiria em “livrar o doente de sua fixação neurótica, suprimindo ou atenuando o recalque primitivo… recorrendo à repetição do trauma do nascimento mediante a assistência de uma parteira experiente”.

Paradoxalmente, a própria possibilidade de se repassar pela experiência do nascimento invalida a tese de Rank. Não se trata aqui do mé phunai, “melhor não ter nascido”, frase proferida por Édipo na tragédia de Sófocles. Rank zomba da tragédia ao propor que o melhor é nascer duas vezes. Freud, neste sentido, é muito mais fiel ao trauma ao sustentar o caráter irreconciliável entre a liberdade do sujeito e a torrente civilizadora. No fundo, todo hedonismo tem um fundo rankiano. A regressão ao traumatismo do nascimento não visa à volta ao útero materno, trata-se da eliminação daquilo que faz sintoma para o sujeito na perspectiva de que é possível lançar os dados duas vezes.

Assim sendo, a referência ao livro Cândido, de Voltaire, que faz Freud no Mal-estar da Civilização, é a melhor resposta que ele pode dar a Rank. É possível constatar uma espécie de savoir y faire, saber se virar, no final proposto por Voltaire. No término da história, tudo parece ter voltado a ser como antes na vida de Cândido. A sucessão de eventos traumáticos, cujo paradigma seria o famoso terremoto de Lisboa, não separa Cândido de sua amada Cunegonde. O que muda é o próprio estatuto de seu objeto de amor. Não há mais um segundo nascimento (o que seria voltar ao mundo em que vivia antes de suas viagens), sua amada tampouco é bela como no início da história, uma vez que ela foi raptada, prostituída e seduzida pelas riquezas que uma mulher pode conseguir vendendo seus dotes. Cândido termina sua odisséia com o otimismo, irônico sem dúvida, de que, mesmo no pior dos mundos possíveis, é possível ficar em casa regando seu jardim.

Encontramos nesta referência o germe da dificuldade moderna em distinguir a fronteira entre individualismo e autonomia. O individualismo decorrente do hedonismo moderno marca a cultura como regida pelo universo do consumo. Não é fácil, em nossos dias, separar quais são os bens oriundos da produção cultural e quais bens são oriundos do mercado de consumo. Esta fronteira diáfana segue as normas utilitárias que preconizam a maximização da felicidade mediante a minimização do sofrimento. Uma citação de Jean Guitton implica a raiz do hedonismo contemporâneo no próprio declínio da Igreja: …a doença é o estado natural do cristão, quando ele tem saúde é aí que ele deve se espantar: que horrível proposição!

Guitton chama a atenção para o fato de que a dor e o sofrimento não mais servem para expiar a culpa. Cessado o castigo divino, o progresso científico reedita a questão cínica sob nova roupagem: por que sentir dor se temos anestesia? Deste modo, a falta de sentido no sofrimento faz com que o mesmo seja visto como peça estranha a ser extirpada. Esta estratégia atual de fabricação do “sujeito feliz”, transformando o que lhe faz sofrer em objeto destacável, foi anunciada por Freud na oitava parte do Mal-estar na civilização. Nesta passagem, Freud interroga por que os pacientes não acreditam quando ele lhes fala de sentimento de culpabilidade inconsciente. Observamos que sua preocupação ainda é atual, posto que a psicanálise é responsabilizada, sobretudo por alguns segmentos da psiquiatria biológica, por não poupar o deprimido do circuito da culpa, na contramão da ciência que isola cada vez mais a doença no corpo cadaverizado. A indagação freudiana espanta pela atualidade de sua colocação. Talvez, escreve ele, o sentimento de culpabilidade não seja mais do que uma variante da angústia. A era da depressão e da síndrome de pânico marcaria esta mudança da subjetividade de nossa época, que passaria da culpabilidade à “angústia diante do Superego”.

Os massacres em escolas americanas deixam uma óbvia pergunta que não deixa de ecoar na agenda do governo brasileiro atual: como pode uma sociedade que vive permanentemente se armando até os dentes, para um possível ataque, ficar tão surpresa com a chacina de colegiais promovida por adolescentes que compram armas pela internet. A perplexidade e a impossibilidade mesma de reconhecer as motivações que são, contudo, mais do que evidentes, comprovam o sintoma de toda cultura armamentista. Parte da nação americana, em prantos choca-se, com a falta de sentido na ação do assassino de massa, mas outra parte sucumbe à razão cínica da National Rifle Association de que o problema não são as armas, mas a insuficiente detecção de potenciais doentes mentais perigosos. Não é fácil enfrentar o poderoso lobby da NRA[i], que nega toda a responsabilidade sobre os massacres e propõe, a partir desses atos isolados de violência, intensificar a elaboração de protocolos de periculosidade das doenças mentais. O enigma desta falta de sentido trouxe à tona a angústia de um povo que abandonou o sentimento de culpabilidade. Ou seja, entre a vergonha e a angústia, optou-se pela angústia, um sentimento sem Outro.

Quem é este novo sujeito? Oriundo do mundo prêt à jouir, ele não mais se sente culpado por ter gozado demais dos objetos à venda no mercado. Ao contrário, a exigência contemporânea de desfrutar de tudo, cada vez mais e melhor, paradoxalmente reintroduz a dimensão da culpa mas sob outra vertente, pelo fato de não se ter gozado o suficiente (para Lacan, o superego não mais é o que impede o gozo e sim o que exige que o sujeito se extenue gozando). Ou seja, o mundo de excessos traz em seu bojo culpa… e tédio. Não fosse a potente intervenção da indústria farmacêutica, expandindo uma cultura que ignora a subjetividade de qualquer afeto, a psicanálise apontaria a real dimensão do estrago.

Para Antonio Teixeira, é a prevalência dos efeitos do discurso da ciência em nosso mundo que autoriza um veredicto de inspiração kierkegaardiana; a modernidade perde em trágico o que ela ganha em desespero. O mass shooterelimina o próximo não necessariamente por ser este um inimigo, e sim por ser uma cifra. Trata-se de odiar um outro sem rosto, como diria Levinas. Eis um ponto onde a psicanálise pode apontar novos enfoques. Não mais se trata de instruir o mundo na direção de uma guerra onde os duelistas, tal como no filme de Ridley Scott, se baterão até o final dos tempos. Não há mais sentido na guerra do bem contra o mal. O inimigo, portanto, não ocupa mais uma posição onde a identificação seja possível. O genocídio será mais bem executado na medida em que a culpabilidade for esvaziada do processo.

Um contraponto ao individualismo excessivo de nossa época estaria no modo como Camus decretou que a tragédia nos dias atuais é apenas coletiva. Para ele, esta incongruência seria nomeada de absurdo, ou seja, o reconhecimento da incompatibilidade entre a intensidade da vida material e a certeza da morte. Deste modo, a perda do sentimento trágico clássico, bem como o desenvolvimento das neurociências, contribuiu para forjar a expansão epidêmica, no mundo ocidental, das “nações depressivas”, expressão utilizada no final da década de 80 por ocasião do lançamento do Prozac.

Uma psicanálise somente será possível quando o acontecimento traumático atingir a dimensão trágica de revelar os impasses da condição singular de um luto que não se presta a identificações, conseqüentemente impossível de se inscrever na coletividade. No caso dos assassinatos em série, passados os dias das manifestações em praça pública, cada um volta para casa com seus mortos. É no campo entre estas duas mortes, a morte real e a morte simbólica, que o psicanalistairá atuar.

É quando ele pode tratar a angústia separando o sujeito de seus objetos, condição fundamental para que haja o desejo.

[i]Esta associação, segundo as palavras do Dr. Jeffrey A. Lieberman, ex-presidente da American Psychiatric Association (APA) é muito mais poderosa que todos os lobbies da saúde mental. A NRA sustenta a tese de os massacres em escolas americanas são causados por uma doença mental e não pela posse de armas semi-automáticas, conforme artigo de Erica Goode, “Focus on Mental Health Laws to Curb Violence Is Unfair”, no New York Times.

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