EP03 — Essa história ainda atormenta

Bruno Garofalo
A Oficina
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4 min readApr 21, 2019
Foto: Marc Vidal

— Eu não conheço você — gritei, para me certificar de que ele ouvisse, enquanto finalmente fechava a porta e colocava música alta para evitar ouvir mais qualquer grito dele. Eu simplesmente esperava que Humberto o levasse até a portaria sem maiores problemas, ainda que ele tivesse que chamar o vigia. Aquele homem não era mais problema meu. Já tinha feito mais do que deveria por ele.

Ou pelo menos era isso que eu queria pensar.

Me deitei na cama mais uma vez e fiquei olhando para o teto enquanto qualquer uma dessas cantoras pop — para mim, eram todas iguais — cantava quase que em tom choroso a respeito de alguma desventura amorosa. Recomeçar a vida do zero foi uma escolha cheia de renúncias. Desde que pus o pé para fora do presídio naquele dia, não muito distante, eu não tinha mais nada. Amigos, família, posses. O anel de noivado foi trocado por uma garrafa de um uísque caro que já estava quase no fim. E apesar de sofrer com isso, quando uma parte do meu passado vem até mim, eu escolho renegá-la. Talvez eu estivesse simplesmente ficando maluca.

No dia seguinte, após o expediente, meu merecido happy hour. Desci do ônibus cinco pontos antes de onde eu normalmente descia e caminhei até uma casa noturna com uma porta nada convidativa num beco escuro e sujo. Eu não me relacionava profundamente com ninguém dali, mas sabia que pelo menos o público era fiel. A única pessoa que me conhecia de verdade — a minha nova versão, pelo menos — era Antônio, o cara do bar. Ao meu ver, ele não merecia nenhum título além de o simples cara do bar.

— O de sempre por favor, Toninho — disse, cansada.

Ele respondeu “pra já, patroa” talvez, enquanto eu me virava e observava as mulheres seminuas fazerem acrobacias nos mastros enquanto diversas pessoas jogavam dinheiro nelas. Eu via no olhar de muitas delas a tristeza de quem tem que se sujeitar a esse tipo de coisa para pagar as contas. Eu dei a sorte de conseguir convencer Humberto naquela entrevista de emprego, mas poderia ser eu ali no lugar de qualquer uma delas. A noite passou voando. Quando saí, já bêbada o suficiente para não tomar as melhores decisões, resolvi ir andando para casa.

Antes mesmo de sair do beco, um homem de touca ninja me agarrou por trás e eu senti que ele encostou uma lâmina na minha costela. Tentei gritar, mas ele sussurrou que cortaria minha garganta se eu fizesse um escândalo. Comecei a pensar no pior. Ele andou comigo por alguns quarteirões — e naquele momento eu praguejava mentalmente pelas ruas estarem vazias — até que entramos num beco sem saída. Ele me empurrou e retirou a touca enquanto eu me levantava.

— PUTA QUE PARIU, JUAN! Quer me matar do coração?

— Calma, Julieta — pediu meu meio-irmão. — Eu sabia que esse era o único jeito de você me ouvir.

— Meu nome é Katarina, babaca. E o que te faz pensar que eu vou te ouvir agora?

— Porque você me ajudou há 5 anos e é hora de eu te recompensar.

Pela primeira vez na (nova) vida, surgiu dentro de mim uma faísca de esperança. Era só ouvir o que ele tinha a dizer e eu poderia finalmente sair daquela merda de vida. Ele guardou o canivete no bolso e começou me pedindo desculpas por ter me feito passar por tudo aquilo. Que tinha sido culpa da mãe dele, que era superprotetora, e meu pai simplesmente aceitou por medo de perder o casamento. Afinal, ele já não precisava mais cuidar de mim, não é? Eu já era adulta.

— Fui fazer um intercâmbio nos Estados Unidos e acabei ficando ilegal lá. Tive que viver escondido por muito tempo. Deixei a barba e o cabelo crescerem justamente pra ficar mais difícil de reconhecer, mas eles me pegaram e eu fui deportado. Eu tava com um pessoal meio barra pesada. Tive que aprender a me defender também — contou, enquanto batia no bíceps. — Enfim, um dos meus parceiros lá tem um esquema com um pessoal daqui. E eu imaginei que talvez você quisesse ir pra lá, pra sair desse buraco. Só precisa topar algumas coisas.

— Você tá me pedindo pra vender droga e correr o risco de voltar pra cadeia? Tá maluco?

— Não… Na verdade, sim. É isso.

— Era a sua cara mesmo…

— Enfim, toma aqui meu número — e me entregou um pedaço de papel. — Me liga depois, se mudar de ideia.

— Nem fodendo — saí, pisando forte. Minha passada foi diminuindo e, quando eu estava no final do beco, me virei para trás e disse algo de que eu poderia me arrepender.

“Vou pensar no seu caso.”

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Bruno Garofalo
A Oficina

Levando poesia à vida comum. Textos às segundas, com (cada vez menos) raras exceções. Escrevo sobre o que quer que me inspire.