EP04 — Essa história tem gosto de sangue

Matheus Salustiano
A Oficina
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4 min readApr 28, 2019

— Vou pensar no seu caso — repeti para mim mesma.

Olhei atentamente mais de uma vez aquele pedaço de papel. Estava encardido e cheirava a fritura — seria um daqueles sacos de comida fast-food que te mata por dentro?

Chegar até o meu cubículo chamado condomínio estava mais demorado naquela noite. A cada três passos rápidos que eu dava, recuava dois. O que seria tudo isso, afinal? Karma? Não, nunca acreditei nisso. Seria a força divina dos orixás, afinal, eu estava na Bahia? Também não.

Mas então por que tudo isso agora? Primeiro meu ex-noivo, agora Juan? Por que está me perseguindo também, Julieta? Eu não sou mais você. Sou Katarina… KATARINA!

O céu estava se fechando quando olhei as horas no relógio. Eu estava atrasada três horas para o jantar que eu mesma ia preparar. O cardápio era sempre o mesmo: miojo com farofa. Apressei meus passos novamente, desta vez sem voltar atrás tantas vezes.

— Por quê? Por que agora? Estava tudo encaminhado — a primeira gota de chuva me atingiu em cheio na nuca e escorreu pelas costas.

Após dez minutos de passos sem interrupções, estava frente a frente com o condomínio. Seu Humberto estava próximo ao portão, quando me perguntou se estava tudo bem. Ele sabe que nunca fui de me atrasar.

— Só exagerei um pouco na comida e tive que passar no hospital — menti.

— Cuidado com esses lugares meia-boca. A maioria tem uma higiene péssima. Eu sei disso porque antes de vir para cá eu trabalhei como ajudante de cozinha em um restaurante lá em Pernambuco. Cada coisa que eu vi que só pela misericórdia… — fingi um princípio de vômito para escapar da continuação desse causo do Seu Humberto.

Procurando o molho de chaves, não me atentei a um importante detalhe: a porta de casa estava arrombada. Improvisei um soco inglês na mão esquerda com todas as chaves possíveis. Com a mão direita, liguei a lanterna do celular. Tudo estava do jeito que eu havia deixado. Não foi uma tentativa de roubar algo ali de dentro. Quê seria, então?

— Você pode até enganar os idiotas daqui, mas mim você nunca enganou. Meu tempo naquele inferno também acabou e agora eu vou arruinar tudo o que você construiu aqui.

Eu me lembrei dela. Como esquecer Rosa, que de delicada só tinha o nome? Ela foi o meu algoz nos tempos da cadeia. Foi naquela ultima briga, que perfurei seu olho esquerdo com um prego enferrujado, que Rosa prometeu a todas do pavilhão que voltaria para a cadeia com a minha cabeça pendurada em uma corrente.

Com toda certeza eu morreria ali se a confrontasse. Rosa tinha o triplo do meu tamanho. Tentei descer as escadas correndo, mas ela foi mais rápida. Com uma mão, puxou-me para dentro da minha casa. O tempo fora da cadeia me fez perder as habilidades de luta que fui forçada a aprender. A cada golpe no rosto, minha boca ficava ainda mais com o gosto férrico do meu próprio sangue. O tapete, que antes era castanho, agora tinha detalhes em vermelho. Eu era uma artista abstracionista e não sabia. Qualquer maluco por arte pagaria por aquele tapete, fruto do sangue, sem suor. Tudo aquilo durou cinco minutos, que pareciam uma eternidade. Rosa saiu de cima de mim, o cansaço falou mais alto.

— Eu só não te mato agora porque tenho outros planos. E seria muito fácil deixar o seu corpo aqui no chão. Não, não. Eu quero ver você sofrendo horas e horas por tudo que você me fez. Em breve te farei uma nova visitinha. Deixe a porta aberta.

Rosa saiu pela janela. Com fraqueza nas pernas e a cara inchada, não consegui me mexer muito. Pensei em interfonar para o Seu Humberto, mas ele me expulsaria do condomínio com toda certeza. Pela primeira vez em muito tempo, senti medo de estar sozinha. Rosa voltaria. Não adiantava fugir. Ela me caçaria até no inferno — não aquele em que eu estava, o outro. Rosa não era idiota, provavelmente tinha ajuda nisso tudo. Eu só tinha uma única opção de sobreviver.

— Alô, Juan? Estou dentro, mas em troca eu vou precisar de um favor seu. Encontre-me no mesmo beco de antes. Talvez eu demore um pouco para chegar, mas te explico tudo pessoalmente. Traga curativos e uma garrafa de whisky, vou precisar.

Oficina é um projeto constituído por escritores, que não realizam apenas troca de conhecimentos na área literária, mas também propõem contar uma história de forma compartilhada, ou seja, construir juntos uma mesma história, cada qual continuando-a em sua narrativa, assim sem previsão de como pode ser o final.

O texto que você acabou de ler faz parte da terceira temporada “O Retorno de Katarina, que terá 11 episódios publicados todo domingo.

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Matheus Salustiano
A Oficina

Autor de “De Angola ele é” |Jornalista não objetivo|Umbandista |Escreve para A Oficina| https://www.facebook.com/matheussalus/