EP10 -Essa história é minha

Rafael Moreno
A Oficina
Published in
3 min readJul 8, 2019
Photo by Nonsap Visuals in Unplash

A questão é, eu tô pegando o jeito da coisa.

E confesso que fico puta comigo mesmo por entender tão tarde uma coisa tão simples: as memórias não deixam de existir. Elas estão sempre ali, acessíveis. Talvez difíceis de serem pegas, mas, ainda sim, ali.

Se ainda duvida, me responda, desde quando você fuma, Antônio?

— Eu nem reparei que essa merda estava na minha boca. Deve ser o problema do cigarro, a gente acaba até perdendo o paladar para as coisas que importam. Será que vou morrer de câncer.

Eu odeio uísque, mas sei que já tomei isso milhares de vezes. Apesar de repetirem que meu sorriso é o mais bonito de todos, sinto como se tivesse uma placa no meu maxilar. Ele sempre estala quando falo mais alto. Vivo em São Paulo com toda a certeza que vivi em outros lugares.

A gente olha para baixo, bem da sacada do prédio. Fazia um puta frio e a lua nunca esteve tão gorda quanto hoje.

A pergunta que você deveria fazer é: quantas vezes você já morreu até agora?

— Tenho tido fortes dores de cabeça. Vejo meu reflexo no espelho. Estou mais velho mas não passei pelo processo de envelhecimento. Cada vez que pisco, é como se eu não tivesse vivido nada.

As pessoas pareciam formigas indo de um lado para o outro, dentro de uma grande sociedade de formigas operárias, que colhem toda comida possível para sobrevivem no inverno.

— Então me responda, Julieta, quem são as merdas das cigarras?

— Aquelas pessoas que não nos deixam acordar.

Parece a trama de um filme ruim, eu sei. É um ciclo vicioso essa porcaria. Toda vez que tento me afastar, as mesmas pessoas me pegam de volta, e nesse processo, eu sempre apanho. Isso já me deu nos nervos.

O pobre do Antônio está com os olhos arregalados. Finalmente entendeu e parece levar em consideração um pequeno salto direto pro solo.

Mas aí é que tá o problema. A gente morre e revive toda vez. A resposta tá entre esses dois extremos. Até porque essa merda não é um sonho. É tudo um reboot. Logo que terminarmos, seja lá o que for, vamos dormir para acordar de novo e fazer alguma coisa para alguém, sem nem lembrar das pessoas e nem de nós mesmos.

Fui presa no lugar do filho de uma família rica. Morri. Apanhei no lugar de uma condenada pela facção rival. Morri. Me envolvi numa emboscada envolvendo drogas. Morri.

Temos que entregar o conteúdo do nosso computador para Andreas, um gerente de banco interessado em especulações na bolsa de valores, ou qualquer merda do tipo.

Dessa vez não vou morrer. Odeio uísque e não vou apanhar mais uma vez.

Pergunto se o Antônio me acompanha, e ele diz que a resposta é o livre arbítrio.

— Então viver sem a certeza da morte é como estar morto desde o começo, não é mesmo? Somos manipulados para realizar o trabalho sujo de alguém. Quem eu sou, Julieta?

Estendo a mão para ele. Deixa pra morrer um outro dia, agora que sabemos que existe um fim para isso. A mochila com o notebook cai em câmera lenta dos vinte andares do prédio e o tal do Andreas fica desesperado, já que suas mercadorias sumiram.

Somos as formigas, falo para o Antônio. E lembre da história, no fim, a cigarra se fode no inverno.

Nada como começar uma vida nova. Dessa vez sendo quem eu sou.

Me desculpem, mas, a partir de agora, quem sou não interessa a nenhum de vocês.

Oficina é um projeto constituído por escritores, que não realizam apenas troca de conhecimentos na área literária, mas também propõem contar uma história de forma compartilhada, ou seja, construir juntos uma mesma história, cada qual continuando-a em sua narrativa, assim sem previsão de como pode ser o final.

O texto que você acabou de ler faz parte da terceira temporada “O Retorno de Katarina, que terá 10 episódios publicados todo domingo.

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Leia o episódio anterior:

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