Por Carol Dantas — Criadora do blog Adsumus

EP08 — Essa história está só começando

Carol Dantas
A Oficina
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4 min readJun 9, 2019

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Essa história está só começando

Sentei no único sofá que não era rasgado da casa do Seu Antônio e coloquei a mão na cabeça. Aquilo não podia ser real. Sem nenhuma pressa e com a mesma expressão no rosto, Antônio foi até a geladeira e encheu dois copos de Whisky. Veio em minha direção e se sentou na mesa de centro, ficando bem de frente para mim:

- Menina, tem muito dessa bagunça que você ainda não sabe.

- E como foi que você descobriu isso? — Respondi atrasada, depois de enrolar com o copo na boca.

- É que a vida tem um tempo engraçado. Uma hora a gente acha que vai ser garçom a vida toda e a outra tá vivendo de vingador por aí. Perder minha mulher me fez entrar num outro mundo e, te ver desse jeito me fez voltar. Você me lembra dela.

- O senhor é vingador, é? Com essa cara de inocente?

- Jeito de dizer — Arrumou os óculos pesados e quadrados e tomou um gole do Whisky dele, se levantando para fumar.

Naquele silêncio cheio de perguntas, toca o telefone — tão moribundo quanto o resto da casa — ressoando um som que remetia aos anos 80. Fui atender como se morasse ali há anos. Mal esperava o que estava por vir.

- Julieta? — Enrijeci. Conhecia muito bem aquela voz. — Julieta, me responde. Eu sei que você tá aí, tô te vendo.

- Seu Antônio, fecha as cortinas, rápido. — Ele correu sem entender, mas não perdeu a calmaria usual — O que é que você quer?

- Que bom ouvir sua voz, Julieta. Mas tenho que falar que fechar a cortina não adianta muita coisa. Continuo te vendo. Mas não se assusta, é bom te ver. Estava com saudades.

Ouvir Andreas soar tão íntimo como há tantos anos fez Julieta, que se reconhecia como Katarina e voltou a se ver como Julieta, se sentir vulnerável pela primeira vez no meio de todo aquele furacão. Não sentia medo, nem incerteza, mas somente raiva. Não fazia muito tempo que haviam se cruzado e ele fingiu nem mesmo conhecê-la.

- Julieta, eu sei que você não está entendendo nada, mas vou facilitar pra você. Tá na hora de você acordar, estão querendo te matar por um motivo, não acha?

Julieta bateu o telefone com força no chão, não queria ouvir mais nada daquilo. Nada fazia sentido. Mas olhar o que restou do telefone no chão, com o gancho arrebentado e pedaços brancos um para cada lado ressuscitou uma memória que nunca a incomodou antes.

- E aí, menina? Tá voltando? Acho que você nunca mais faz isso na sua vida. Vamos ver se agora começa a me ouvir. Será que finalmente essa droga que você e a Rosa inventaram tá parando de fazer efeito?

Julieta abriu os olhos: ali não tinha mais seu Antônio, apartamento velho ou cabelos curtos. Só havia ela, Andreas e mais ao fundo Rosa. Sua visão foi voltando ao normal e deixando de ficar turva. Andreas segurou em sua mão e sorriu. Rosa, mais ao longe, vestida com um jaleco branco e com olhar cético se aproximou buscando uma resposta. Desligou o monitor que contava com várias fotos dos momentos que Julieta pensou vivenciar nos últimos tempos e puxou uma cadeira para ficar perto dos outros dois.

- Estou vendo que essa viagem toda me pintou como vilã, não é? — Se voltou para Andreas — Olha, doutor, vejo que criar pessoas novas ela não criou não, então está tudo como o planejado. Já você, Julieta, é louca. Isso podia ter feito seu cérebro virar geleia.

- Ela ainda está perdida, foi muita história pra pouco tempo de droga, dê um descanso pra ela Rosa — Andreas terminou analisando cada imagem no monitor. Segurava um controle que conseguia recapitular os momentos que Julieta viveu como se fossem uma gravação de um reality show e eles fossem da produção.

- Você percebeu que no final ela se lembrou do telefone quebrado, Andreas?

- Percebi, e foi exatamente o que usamos de sinal para ela voltar. Tá funcionando, Rosa. A gente conseguiu. Ouviu, Julieta? Sua loucura deu resultado. A gente conseguiu.

Sem perceber de onde vinham tantas memórias que começavam a voltar para seus lugares corretos, Julieta levantou da maca onde estava, colocou em ordem a roupa e prosseguiu:

-Então finalmente vamos poder tirar alguma coisa da cabeça do Seu Antônio. Não vejo a hora. Esse velho merece todo o terror que essa droga proporciona. Isso e muito mais. Andreas, prepare outra dose, quero ver de camarote tudo o que esse canalha vai experimentar.

- Se pelo menos na experiência dele eu não for a malvada, fico mais satisfeita. — Rosa fez graça enquanto ajustava o monitor para Julieta.

- Não, não. Pode deixar que na dele a carrasca vai ser eu. Traz o velho pra cá, Andreas, minha hora chegou.

Oficina é um projeto constituído por escritores, que não realizam apenas troca de conhecimentos na área literária, mas também propõem contar uma história de forma compartilhada, ou seja, construir juntos uma mesma história, cada qual continuando-a em sua narrativa, assim sem previsão de como pode ser o final.

O texto que você acabou de ler faz parte da terceira temporada “O Retorno de Katarina, que terá 11 episódios publicados todo domingo.

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Leia o episódio anterior:

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Carol Dantas
A Oficina

Teacher, Brazilian writer, and endless learner. Using words to make life more interesting. Exploring the seas of my own mind, all the time.