Como fazer um projeto de Design Especulativo Não-Colonialista: Um Guia Rápido

Pedro Oliveira
A Parede
Published in
6 min readAug 10, 2016

OBS: este texto foi escrito em colaboração com Luiza Prado, e publicado originalmente em inglês aqui no Medium. Esta tradução contém, obviamente, algumas adaptações.

Em Fevereiro de 2014, eu e Luiza publicamos um outro texto aqui no Medium onde, aparentemente, apresentamos alguns argumentos que repercutiram bem entre designers — tanto profissionais quanto pesquisadores. No dito texto, nós identificamos e criticamos o que entendemos como um certo desprezo por parte da maioria dos projetos e publicações em Design Crítico e Especulativo (em inglês mais comumente conhecido pelo acrônimo SCD) no que tange questões de privilégios raciais, de classe, e de gênero. Para nós isso é um problema muito sério que precisava ser discutido.

Obviamente, um bom número de outros designers–profissionais e pesquisadores–nos responderam, direta e indiretamente, argumentando que em nosso texto estávamos sendo injustos demais, “procurando pêlo em ovo”, ou mesmo aumentando os fatos para ajudar nossa narrativa a atingir seu objetivo — o que quer que isso fosse. No entanto, questões muito parecidas com as que levantamos apareceram também em momentos pontuais durante a Conferência da Design Research Society de 2014, que ocorreu na cidade de Umeå, Suécia. Não obstante, no mesmo ano fomos convidados para um painel na Open Design Conference de Barcelona, discutindo exatamente estas e outras questões que levantamos ao longo deste tempo. Em paralelo, outros artigos escritos por outros autores de outras partes do mundo, desenvolveram questões que não só partiam como também complementavam as nossas críticas iniciais. Unindo todos estes autores estava o fato de todos nós sermos os catalisadores da discussão que originou aquele nosso primeiro texto. Ou seja, ficou evidente que havia um problema precisando da nossa atenção, e estes textos oferecem não só uma perspectiva abrangente do tamanho e da gravidade da situação, mas também expandem consideravelmente o nosso ponto de partida.

De todo modo, estes textos e as reações que eles causaram só nos mostraram o que já esperávamos que aconteceria: que (1) são questões que se mostraram urgentes e relevantes, e (2) o que nos propusemos a questionar não se resume somente à questão da “representação,” clichés ou atos simbólicos (tokenism) — embora muitos dos nossos críticos insistam em dizer o contrário. Não obstante, projetos e publicações de SCD ainda deixam passar muitos dos mesmos “pressupostos tacanhos”[1] que a disciplina se propõe a questionar; desta maneira, SCD enquanto disciplina segue inevitavelmente reforçando e perpetuando o status quo do colonialismo e do imperialismo.

Para tentar facilitar as coisas, nós desenvolvemos aqui um “guia rápido”, simples e direto para ser consultado por Designers interessados em serem Críticos e Especulativos. Inicialmente esta lista foi desenvolvida para nossos colegas Designers Europeus ou Norte-Americanos, mas achamos de bom tom tê-la também em português brasileiro. Por mais absurdo que isso pareça, discussões mais abrangentes (ou seja, fora dos movimentos sociais) sobre raça e classe são ainda muito incipientes no Brasil. Porém, felizmente elas têm ganhado muita força nos últimos anos. Portanto, é importante ressaltar que embora a lista fale de “colonialismo”, entendemos que as ramificações deste projeto dentro de uma ex-colônia como o Brasil deixou suas feridas na forma de um racismo institucionalizado, machismo internalizado, e um classismo oriundo da combinação perversa dos dois anteriores. Entenda como um “projeto não-colonialista” um projeto em Design menos racista, machista e classista.

Esta lista é inspirada livremente nos textos “7 Things You Can do To Make Your Art Less Racist”, de Sandrine Micossé-Aikins— um texto muito recomendado para antes e depois da nossa lista — e no “Social Design Toolkit”, de María del Carmen Lamadrid, que também achamos obrigatório. Ok, vamos lá?

Guia rápido para projetos de Design Especulativo Não-Colonialistas:

  1. Meça seus Privilégios. Este primeiro vem direto do texto da Sandrine. Se você nasceu na Europa, há uma boa chance que seu país de origem teve (ou ainda tem) colônias e tratou (ou ainda trata) estes povos colonizados como subalternos. Sim, nós sabemos que não é culpa sua e sim, sabemos também que #NotAllEuropeans. Mas também sabemos que os EUA, mesmo sendo uma antiga colônia britânica, assumiu a tarefa dos antigos colonizadores de tratar o resto do mundo como se fosse seu quintal ou sua fossa–o que chamamos por aqui de imperialismo. Sim, nós sabemos disso, mas você também deveria saber que isso são fatos e que você não pode mudar o passado. Portanto reconheça que uma boa parte do seu privilégio vem do fato que seu conforto e a riqueza do seu país foi adquirida–e você ainda se beneficia dele– através da catástrofe alheia.
    Diferentemente do original em inglês, aqui vale um adendo específico à complexidade étnica do Brasil: se você é brasileira/o de pele branca, reconheça também seus privilégios. Sua ancestralidade europeia lhe garante uma série de pequenos privilégios dentro do Brasil os quais você também não pode mudar, mas pode estar atenta/o às vantagens que isso te dá sobre outras pessoas. Sem nos estender muito na discussão, informe-se melhor sobre as demandas do movimento negro, das comunidades, dos quilombolas, dos indígenas, e perceba que, por exemplo, você tem muito menos chances de morrer nas mãos da Polícia Militar, mas mais chances de conseguir um emprego.
  2. Cheque os Fatos: sempre se pergunte “será que esta distopia que estou imaginando já não é realidade em outras partes da minha cidade ou do mundo?” É sempre de bom tom ter a consciência de que o que pode soar terrível para o seu público já é, de fato, uma realidade para outras pessoas. Antes de se perguntar “e se…?”, pergunte-se “será que…?” Especialmente considerando como colonialismo e racismo institucionalizaram o abismo socio-econômico que vemos no Brasil e no resto do mundo.
    (Dica de ouro: comece pela Wikipedia, mas não pare lá. Seja criativa/o!)
  3. “Será que meu trabalho não quer desenvolver soluções mais ‘civilizadas’, ‘sofisticadas’, ou ‘intelectuais’ para lugares ou pessoas ‘em risco’?” Talvez você já saiba a resposta, mas em todo caso pergunte-se de novo. Sempre questione se suas decisões projetuais não refletem visões obtusas do que é considerado “belo” ou “estético”. Minimalismo e assepsia estética não são os únicos exemplos de “bom design”.
  4. “Será que meu cenário/estória/objeto não se apropria de algum valor cultural/social de outra cultura?” Se a resposta for afirmativa, volte ao ponto 2 e cheque de novo se isso já não aconteceu em algum momento da história da sua cultura ou país, porém muito provavelmente de forma bem violenta.
    (Dica de ouro: leia um pouco sobre apropriação cultural. Sim, é um tópico muito controverso e não existe um consenso sobre o que define apropriação. Porém você vai aprender muito e ser uma pessoa muito melhor se ler sobre isso, pode confiar.)
  5. “Meu cenário distópico contém os seguintes aspectos:”
    a) Pessoas brancas no papel de escravos ou fazendo alegoria à escravidão;
    b) Pessoas não-brancas fazendo o papel de robôs, serviçais, alienígenas, ou subalternos e não-humanos em geral;
    c) Objetos cuja estética remete à favela, mas você nunca pisou em uma.
  6. Será que a minha pesquisa se restringe à minha visão privilegiada de como a sociedade poderia ou deveria ser? Ou então, “será que a minha pesquisa não contém autores majoritariamente brancos, europeus, homens, etc.?” Isto é importantíssimo, pois, como nos explica Raewyn Connell no seu livro Southern Theory (2007), muito da literatura que entendemos como “canônica” em ciências humanas vem de autores dentro deste recorte, e muito dos estudos sociais se baseia no fato de que povos colonizados eram, a priori, “primitivos”.
  7. “Meu texto contém os seguintes adjetivos:”
    a) “global” para modelos econômicos;
    b) “neutro” para modelos culturais;
    c) “universal” para modelos teóricos;
  8. Se depois de responder às perguntas acima você já se sente apta/o a executar seu projeto distópico, parabéns. Antes de começar, pergunte-se uma última vez: “será que não seria bom checar com outras pessoas, designers ou não, brasileiras ou não, se meu projeto não é no fundo um grande #classemédiasofre?”

Pode parecer (mais uma vez) um grande exagero da nossa parte, mas acreditamos que seguir este “guia rápido” não custa muito do seu tempo. É um pequeno esforço que pode gerar resultados muito positivos para um desenvolvimento não só epistemológico da disciplina de Design Crítico e Especulativo, mas também pessoal do designer interessado neste tipo de trabalho.

Deixando claro mais uma vez: nossa crítica não é para que todo e qualquer projeto em SCD fale sobre racismo, colonialismo e imperialismo. No entanto, acreditamos que iniciar um projeto (em SCD ou em outra área do Design) sabendo o quanto seus privilégios influenciam suas decisões (mesmo que elas supostamente sejam baseadas num princípio “neutro” — ver 7b) só vem contribuir positivamente para a sociedade. Se “todo design é ideológico”, como diz Anthony Dunne, leve esta frase a sério de uma vez por todas.

Não existe absolutamente nada de errado em se dar ao trabalho de olhar além do próprio umbigo. É para o bem de todos nós, acredite.

[1] No original em inglês, “narrow assumptions”. Anthony Dunne e Fiona Raby argumentam que o design industrial se baseia em tais pressupostos, e propõem SCD como uma maneira de questionar isso.

Imagem de capa: “Landing of Columbus”, de John Vanderlyn (1847) — Wikicommons

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