A Última Cachaça — Capítulo VII

Exumação dos Corpos

Natan Andrade
Revista Simbiose

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O caminho da volta sempre parece mais comprido. Andei até os pés doerem, e percorri aquela cidade sem saber ao certo o rumo do cemitério, mas uma hora acabei me esbarrando naquele lugar onde o mundo dos vivos encontrava-se tão claramente com o dos mortos.

Me deu um cagaço da porra de entrar naquele lugar. Vou não. Mas aí me lembrei que a alma penada aqui era eu e daí tudo ficou fácil. Assim, abri a portinhola que levava ao cemitério da cidadezinha, um lugar rodeado por um muro baixo, com lápides suntuosas dividindo lugar com plaquinhas simples.

Começo andar por entre os túmulos. Nem pio de grilo eu escutava. Naquele momento, a escuridão há muito já havia caído naquele submundo.

Eu rezava para que Zé da Cana não houvesse encontrado o túmulo de Gabriela Oliveira, mas temia achá-lo já desmaiado, após ter bebido todo o conteúdo da pinga que já era o mais mítico dos líquidos criado por mãos humanas.

Então, escuto o barulho de alguém cavando, mas o breu não me permitia enxergar de onde vinha. Mais alguns passos e encontro uma cova revirada. Gabriela Amaral. Não era essa.

Mais alguns passos e encontro outra, Gabriela Silva. Os ossos ainda eram visíveis, mas sem sinal de Zé nem da cachaça. O barulho de alguém cavando permanecia.

Continuo andando sem rumo, tendo apenas a luz da lua como guia. Mais alguns túmulos revirados. Pelo número de covas escavadas, eu provavelmente fiquei desmaiado por um punhado de horas na casa do Teobaldo. O tempo corria sobre mim, e essa não era uma corrida que eu podia perder.

A noite avançava e, tão lentamente quanto chegou, pude começar a sentir que a manhã também viria. Lembrei-me do prazo de Ipamerina e o aperreio só aumentou.

De repente, o barulho de escavações cessa.

Hahaha! O reizinho chegou!

Zé da Cana era mais terra que gente. Ou alma. Às minhas costas, o velho cachaceiro me olhava, apoiado numa enxada. Ele tira de novo o seu cantil de metal e balança na altura dos olhos.

Chá-da-Noiva.

— O quê?

— Um dia, uma noiva forçada num casamento ruim se embriagou demais, um dia antes da cerimônia. No dia seguinte, ela ainda estava completamente bêbada. Sua mãe, então, preparou um chá com boldo, erva-cidreira, gengibre, dente-de-leão, magaba-brava e pau-terra. A noiva não só sarou como teve força pra sair correndo dali e nunca mais voltar. A receita ficou famosa, previne qualquer bebum de embriagar-se mais.

Por isso o filho-da-puta não ficou bêbado como eu ou o velho Teobaldo.

Começo a me aproximar lentamente. Zé toma a enxada novamente em seus braços.

— Sabe o que acontece se você morrer aqui?

Ah, não. Dou um passo para trás. Zé é quem se aproxima de mim.

Zé, a gente ainda pode se salvar dessa. Vamo, meu véio, me ajuda!

Quando você morre aqui você sente toda a agonia. Toda a dor, mas você acorda. E é assim todos os dias.

Dou mais alguns passos para trás.

Zé, e a cachaça? Hora de descansar, cara!

O descanso é pra você, para mim não. Eu não me tornei Zé da Cana em vão, moleque, ah, não!

Eu tenho coisa pra resolver. Me fala, Zé, cadê a cachaça?

Essa desgraça não existe, ou não foi enterrada aqui. Desenterrei cada maldita Gabriela que encontrei. Mas eu não vou parar. Essa cachaça vai ser minha, e eu vou tomar até a última gota. Eu mereço, ninguém mais.

O homem continua se aproximando, lentamente.

Merece? Você é só um bêbado fodido que matou a mulher! Morre de uma vez e acaba com isso!"

Ah, moleque, eu morro, mas te faço pagar por me lembrar dessa desgraça de novo! Você acha que merece mais que EU!?

Eu não mereço também, João de Deus, mas ainda há algo. Isso aqui — levanto minha camiseta para revelar o meu próprio buraco de sofrimento — é tudo meu, foi a minha covardia, foi de não conseguir me levantar e ser quem eu deveria. Mas isso aqui ainda dá tempo. Se você pudesse voltar no tempo e perdoar sua mulher, ou sair daquela casa…você também não tentaria?

Zé não me escuta. Corre em minha direção e tenta me acertar com a enxada, batendo na lápide ao lado. Eu saio correndo, que bobo eu não sou. Olho para trás. Zé já não estava me perseguindo. Resolvo tentar uma última vez.

— Zé, você já MORREU! Não tem mais Zé, não tem mais nada. Você é João de Deus, homem! Não importa o quanto ruim você foi, todo o sofrimento agora já passou. Hora de você tirar essa máscara porca do seu irmão, pegar o que lhe resta e dormir!

E Zé surge, detrás de uma árvore próxima, sem dar chance de reação.

Vem, moleque, vem morrer! Não é isso que você queria?

Sinto a enxada bater nas minhas costas. Eu caio. Quando Zé tenta afundá-la na minha cara, eu rolo para o lado e passo uma rasteira no desgraçado. Ele cai.

Me levanto e agarro a enxada. Zé pula sobre mim e me derruba. Rolamos. Ele força o cabo da ferramenta sobre meu pescoço.

Eu fiz o que tinha que fazer!

Eu tento impedir, mas a força do homem faz a enxada avançar sobre mim, quase me sufocando.

— Zé…eu preciso voltar.

E eu preciso da cachaça!

O ar começa a me faltar. Sinto a madeira roçando meu pescoço. Vejo Laura se despedindo. E, por algum motivo, me lembro da última noite. A noite do Duelo. Os olhos de Zé da Cana estavam vermelhos de ódio, como naquele dia. O dia em que ele contava toda sua história.

Então eu vi. Mais claro do que nunca. O buraco tomava quase toda a extensão do corpo morto do que um dia fora Zé da Cana. Centenas de vezes maior do que o meu. E, diferente do buraco que eu abrigava em meu peito, o de Zé mostrava a mais pura podridão humana. A carne preta caía a cada movimento, e pude jurar ter visto algum fungo ali também.

Você ainda tem tempo!

E seus olhos se amansam. No susto, consigo empurrar Zé da Cana para o lado e tomar a enxada de suas mãos. Dou uma paulada na sua testa. O homem se contorce no chão e, por fim, desmaia.

Me levanto e faço da enxada minha espada, ficando em guarda. Mas Zé já não responde. Hora de trabalhar.

Todas as Gabrielas do cemitério tiveram seus corpos revirados nessa longa noite. Agora, era eu e elas.

Sem me dar por vencido, saio fuçando um a um, sujando minhas mãos de terra e ossos. Gabriela Amaral, Silva, Aparecida, Siqueira. Todas elas em seus ossos putrefatos. Nada da cachaça.

O céu começa a dar sinais de que pode amanhecer nessa cidade fantasma, e eu estava cada vez mais longe de voltar à vida. Olho para os lados, minhas mãos começam a tremer e o coração quer fugir do peito. Pensa, pensa, diabo! Teobaldo enterrou a cachaça com sua mulher, eu sei! Mas cadê?

Me recosto numa lápide. Por um último momento, olho para o negror da noite, com um leve tom violeta que indica que não tarda para a manhã chegar.

Pensa, pensa!

Lembro do meu encontro com Dona Oneide. E lembro também da cachaçada com Teobaldo. Lembro de Laura dançando na sala, fruto das minhas memórias mais perturbadas.

Ela dançava ao som de uma música.

Uma música antiga. A mais bela música que eu já havia escutado. Uma moda sertaneja breguíssima que falava de saudade.

Então, eu entendi, e não há gole de cerveja em tarde quente que se equipare a felicidade que eu senti.

Sim!

Saí correndo por entre os túmulos. Tudo fazia sentido agora. A música da casa do velho Teobaldo voltou aos meus ouvidos mais forte que nunca. Eu procurava um nome específico.

Só um. Aquele que me colocaria de volta no mundo dos que respiram. A resposta ecoou em looping e eu não havia percebido. Pouco conta mais da vida de um homem amargurado do que sua música preferida.

E eu chamei, chamei

Aline, estou aqui

E eu chorei, chorei

Um mar só por ti

De repente, paro em uma lápide simples, uma plaquinha no chão.

Aline

1954–2017

"Por amor"

Eu quase pude sentir o vidro de cachaça brilhando por debaixo de toda aquela terra. A última cachaça fez seu último chamado, implorando para ser desenterrada, e eu atendi.

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A Última Cachaça é a segunda parte da trilogia do Rei da Cana. Para ler a primeira parte, O Duelo, clique aqui.

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Natan Andrade
Revista Simbiose

Escrevo histórias de amor, de boteco e mais algumas coisas.