O Ganido

Natan Andrade
Revista Simbiose
2 min readMar 7, 2019

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O som que mais amei foi o silêncio. Muito mais que as indiscretas declarações de amor em público e do que suas mensagens de voz que grudaram na tela do meu celular: o que ficou em mim foi o seu silêncio.

Quando seus olhos brilhavam, num pedido misto de me beija e me esquece, no seu jeito taciturno de ler o feed do seu celular de manhã, na sua última piscada antes de pegar de vez no sono, na brisa da última cerveja, quando você, já embriagado, não conseguia mais falar. Esses momentos me lembram sua melhor versão.

Afinal, de nada ajudou sua voz rouca de cigarro, sua dicção meio torta e aquele seu sotaque — Deus, eu odiava seu sotaque! — Mas não foi isso que me fez querer esquecer ou maldizer sua voz. Nada disso.

Quis odiar o teu som pelas palavras finais daquele conturbado verão de 2017.

Era uma terça-feira, dia de Netflix ou de estudos. Dia de muita coisa, mas, normalmente, um dia sem você. Eu estava sozinha, em silêncio.

De repente, a tela acende, o mundo apita e o coração vibra: mensagem tua.

Num áudio fedendo a cachaça você diz:

"Gabi, tem uma coisa que eu tô querendo te contar faz muito tempo…"

Sua voz estava rouca, num choro falso que lembrava o ganido do mais safado cão.

"…eu sei que a culpa é minha, mas não sei se dá mais pra gente continuar…"

Maldito o filha da puta que inventou a mensagem de áudio. Fosse texto, haveria de grudar nos olhos, minha memória fraca e pouco fotográfica teria rapidamente esquecido.

Mas não, sua voz raspou a parede interna dos meus ouvidos, bagunçou minha cabeça e ecoou por muitos dias.

Deixo aqui o meu ódio em forma de letra, essa carta malescrita e truncada, repleta de sentimentos ruins.

Mas, pelo menos, não foi um áudio de dois minutos, estragando sua noite e o resto do seu verão de 2017.

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Natan Andrade
Revista Simbiose

Escrevo histórias de amor, de boteco e mais algumas coisas.