Os antídotos contra o mal-estar da existência (pra quando a bad bate)

Felipe Moreno
Revista Simbiose
Published in
2 min readOct 26, 2016

Aumente sua angustia até sua glote fechar e seu peito doer.
Quando se sentir realmente apto e com bravura para enfrentar o mundo em todas as suas formas, pegue um dia cinza, chuvoso, incerto; uma terça-feira qualquer de um meio de ano.
Olhe para o céu e se depare com todo o maldizer da existência.
A sua, a de todos os outros seres e a da própria natureza.
Se, mesmo tremendo as mãos, encare-a como com a determinação de um faminto se aproximando de alimento,
afirme seus traumas e dramas,
todas as tragédias de nossa época,
toda a indiferença do mundo com os seres,
toda a incerteza dos dias,
a possível insignificância do universo,
a violência imanente,
pegue tudo de frente,
olhe no fundo dos olhos da crise,
o fundo dos olhos da existência trágica,
pergunte o que ela quer de você, afinal.

Eis o momento de sentir sua alma rasgar — uma dor imensa, mas que não te apagará.

Ainda estará vivo, vivo como nunca, lúcido o suficiente para ver em instantes a face do terror cair em sua frente.

Respire fundo, deixe a tensão fluir pelos dedos.

Olhe de novo ao seu redor — olhos bem abertos para o mundo.

Venceu, ser humano!

Prevaleceu sua força diante do peso da angustia que tenta nos esmagar. Não só uma força braçal, de extremo físico, mas também a consciência que teve a bravura de desnudar a vida por completo, levantando dela o véu de valores e crenças que cobrem as incertezas e o nada.

Tornou a vida com sentido único, descobrindo que a própria vida não nos deve sentido algum. E é melhor que assim seja! Antídoto fundamental para a sobrevivência heroica no século 21. Uma pisada firme nos comprimidos da tua Fluoxetina, do fio de vida dos nossos dias, dessa pobreza de recuperar a paixão pelos químicos. Aqui, a recuperação da sua serotonina vem à força, sem anestesia.

Seja forte como uma besta enfurecida, extirpe o temor como quem escarra à distância por desprezo. E aí então, já que nenhum pânico pesa os ombros ou sequer te perturba, a doce música vem agraciar os ouvidos. Sua angustia agora, ao invés de anestesiada, morta ou apequenada, se torna exatamente o contrário: grande demais, a ponto de conseguir dominar todas as etapas, superando assim, por ela mesma, a própria dor.

Um peito corajoso, aberto ao vento desconhecido. Glote limpa e fluida, coração nobre, respiração aliviada e profunda. A vida cobra valentia.

--

--

Felipe Moreno
Revista Simbiose

Haicaísta com ternura, prosador com afiação (e vice-versa). Autor de “o bambu balança” (Bestiário, 2022): https://tinyurl.com/36r2kc4j