Quando você calou

Natan Andrade
Revista Simbiose
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2 min readMar 14, 2018

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O seu silêncio não vem de mansinho, como o fim daquela canção que não quer nunca terminar e ecoa rumo ao infinito. Nada disso. Ele vem como um trovão mudo, iluminando minha pequenez.

Sem o mesmo dom para me calar, me prendo ao último argumento da briga, como criança que se agarra ao urso de pelúcia depois de ver o clarão do relâmpago. E a tempestade só começou.

Pois quando resolvi falar, você falou mais alto. Me deixei parar na suspensão da nota grave que saiu da sua voz. O bar, no entanto, não fez questão do nosso dueto e continuou seu murmúrio sem fim, backing vocal daquela canção. Eu esperava tudo, mas o refrão me tomou de surpresa, botando os neurônios para dançar, num baile de sinapses frescas e agitadas pela adrenalina que a raiva repentina nos põe debaixo da língua. E aquele trecho persiste, como música-chiclete: você mentiu.

Nada digno de aplauso. Não menti, você que revisou a letra da nossa música, quis trocar de lugar as pontes, os acordes e o tom. Você é quem não gostava da ideia de dupla, lembra? Que apontou a cafonice e quis melodia mais moderna.

O coral era cheio de vozes, você sempre ouviu outras mais de perto, então também quis. Passeou noutras gargantas, embebendo-se de sussurros que nunca chegaram aos meus ouvidos. Só pude, então, te plagiar. Mas quando a corda da viola arrebentou, você veio me procurar, quebrando camarim, rasgando contrato e dizendo que minha carreira solo começava ali.

Depois do silêncio, veio a conta. Saímos do bar, cada um para um lado. As cortinas se abaixaram, deixamos o palco e as luzes se foram. Mas, lá no fundo, algo dentro de mim ainda gritava: Mais um! Mais um! Mais um!

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Natan Andrade
Revista Simbiose

Escrevo histórias de amor, de boteco e mais algumas coisas.