A experiência vTaiwan e a Democracia Direta

Texto produzido em 2016 durante o evento https://www.medialab-prado.es/videos/inteligencia-colectiva-para-la-democracia-2016

“O voto clássico é apenas um meio. Por que não conceber outros, com base no uso de tecnologias contemporâneas que permitiriam uma participação dos cidadãos qualitativamente superior à que confere a contagem de cédulas depositadas nas urnas? (Pierre Levy, 1999)

Segundo constatação de Pierre Levy, em 1999 no livro Inteligência Coletiva, naquela época, além das atividades associativas, a participação efetiva dos cidadãos na vida da cidade assumia essencialmente a forma de voto. Quando o eleitor dava sua adesão a um programa, a um porta-voz ou a um partido, ele acrescentava uma pequena massa sobre o prato de uma balança, ou um minúsculo diferencial de força a uma proposição. O voto envolvia o cidadão em um processo de regulação social molar, no qual seus atos possuem apenas efeitos quantitativos. Os indivíduos que depositaram na cabina votos idênticos são praticamente intercambiáveis, mesmo que deparem com problemas bem distintos e que seus argumentos e posições se distribuam segundo mil nuanças. As identidades políticas se reduziam ao fato de pertencerem a algumas categorias simples, ou mesmo binárias. As pesquisas de opinião funcionavam, por alto, segundo os mesmo princípios: o entrevistado deve responder isoladamente “sim” ou “não” a questões simplistas postas por outros, e suas respostas só tem efeito estatístico. Além de o modo de expressão permitido pelo voto ser extremamente grosseiro, ele é descontínuo e possibilita pouca iniciativa por parte dos cidadãos: as eleições importantes só ocorrem a cada quatro ou cinco anos.

Já em 1999, o autor previa que um dispositivo de democracia direta em tempo real, no ciberespaço, permitiria a cada um contribuir de maneira contínua para a elaboração e o aperfeiçoamento dos problemas comuns, para a abertura de novas questões, para a formulação de argumentos, para enunciar e adotar posições independentes umas das outras sobre grande variedade de temas. Os cidadãos desenhariam juntos uma paisagem política qualitativamente tão variada quanto quisessem, sem ficar limitados de saída por grandes separações molares entre partidos. A identidade política dos cidadãos seria definida por sua contribuição à construção de uma paisagem política perpetuamente em movimento, e pelo apoio que dariam a determinados problemas (que eles julgam prioritários), a determinadas posições (às quais eles aderem), a determinados argumentos (que eles retomam por conta própria). Com isso, cada um teria uma identidade e um papel político absolutamente singulares e diferentes dos de outro cidadão, conservando a possibilidade de concordar com os que, sobre este ou aquele assunto, em determinado momento, possuem posições próximas ou complementares. É claro, todas as precauções seriam tomadas para proteger o anonimato das identidades políticas. Não se participaria mais da vida da cidade “fazendo número”, acrescentando peso a um partido ou conferindo legitimidade superior a um porta-voz, mas criando diversidade, animando o pensamento coletivo, contribuindo para a elaboração e a resolução dos problemas comuns.

Essas ideias parecem começar a tomar forma 15 anos depois em um método de tomada de decisão criado em Taiwan. O método “vTaiwan” combina a criação de consenso com uso do aplicativo “Pol.Is” com programas de entrevistas televisionadas e reuniões mistas (virtuais e presenciais) com especialisas de altos membros do governo, como ministros e prefeitos.

O aplicativo “Pol.Is” é uma tecnologia onde o usuário escolhe entre “concordo”, “não concordo” ou “passo” em resposta a declarações de outros usuários. Cada usuário pode incluir suas próprias declarações. O Pol.is reúne utilizadores que votaram de forma semelhante em grupos utilizando aprendizado de máquina (inteligência artificial) e exibe esses grupos em tempo real. Quando o aplicativo foi implantado no método vTaiwan, a participação das pessoas aumentou a complexidade das questões e moderadores voluntários não eram mais necessários durante a “criação do programa pela opinião pública.” Depois de anos trabalhando em estreita colaboração com a equipe do vTaiwan, o Pol.is se tornou público e já é possível a sua integração nos processos de governo.

A integração do aplicativo ao método vTaiwan ocorre da seguinte forma:

  • em primeiro lugar o aplicativo é distribuído através do Facebook e redes interessadas;
  • depois se realiza uma reunião pública onde acadêmicos e autoridades respondem as perguntas que surgiram durante os diálogos;
  • depois ocorre uma reunião presencial com os interessados, com participação da sociedade civil e do governo, e com transmissão para participantes a distância;
  • por fim, o governo concorda em executar os pontos que tenham atingido consenso, ou fornece uma explicação detalhada para aqueles pontos que ainda não são possíveis de serem executados.

O processo vTaiwan ganhou tanta importância, que em 26 de julho de 2016 a nova presidente declarou em uma reunião interministerial que todas as questões nacionais importantes deveriam passar por um processo similar ao vTaiwan.

--

--

Gustavo Warzocha Fernandes Cruvinel
A Sociedade Conectada na Política Brasileira

Cientista da computação, Especialista em Redes Sociais Digitais e Mestre em Ciência Política