Pierre Levy e a Inteligência Coletiva

Texto produzido em 2016 durante o evento https://www.medialab-prado.es/videos/inteligencia-colectiva-para-la-democracia-2016

“O uso socialmente mais rico da informática comunicacional consiste, sem dúvida, em fornecer aos grupos humanos os meios de reunir suas forças mentais para constituir coletivos inteligentes e dar vida a uma democracia em tempo real.” (Pierre Levy)

Segundo Pierre Levy, por ocasião do nascimento das democracias modernas, milhões de cidadãos se dispersaram em extensos territórios. Foi, na época, praticamente impossível manter uma democracia direta em grande escala. Com isso, surgiu a democracia representativa, que pode ser considerada uma solução técnica a dificuldades de coordenação. Mas, uma vez que melhores soluções técnicas são apresentadas, não há motivo algum para não explorá-las a sério. Os regimes pluralistas e parlamentares clássicos são com certeza preferíveis a ditaduras, e o sufrágio universal é superior ao sufrágio censitário. O ideal da democracia não é a eleição de representantes, mas maior participação do povo na vida da cidade.

Ainda segundo o autor, as infra-estruturas de comunicação e as tecnologias intelectuais sempre mantiveram estreitas relações com as formas de organização econômicas e políticas. Lembremos a esse respeito alguns exemplos bem conhecidos. O surgimento do alfabeto na Grécia antiga é contemporâneo ao aparecimento da moeda, da cidade antiga e, sobretudo, da invenção da democracia: tendo a prática da leitura se difundido, todos podiam tomar conhecimento das leis e discuti-las. A imprensa tornou possível uma ampla difusão de livros e a existência de jornais, base da opinião pública. Sem ela, as democracias modernas não teriam nascido. Além disso, a imprensa representa a primeira indústria de massa, e o desenvolvimento tecnocientífico por ela promovido foi um dos motores da Revolução Industrial. A mídia audiovisual do século XX (rádio, televisão, discos, filmes) participou do surgimento de uma sociedade do espetáculo, que transformou as regras do jogo tanto na cidade como no mercado (publicidade).

No entanto, os meios de comunicação de massa pouco ajudam os povos a elaborar coletivamente soluções para seus problemas e a pensar em conjunto. Depois de nossas sociedades experimentarem os poderes críticos e desterritorializantes da mídia clássica, porque não experimentariam as capacidades de aprendizado cooperativo, de urdidura e reconstituição do laço social de que dispõem os dispositivos de comunicação interativos, como a Internet e as Redes Sociais Digitais.

Essa experimentação e reinvenção dos instrumentos de comunicação e do pensamento coletivo não ocorrerá sem que se reinvente a democracia, uma democracia distribuída por toda parte, ativa, em tempo real. Neste ponto perigoso de virada ou de encerramento, a sociedade poderá reapoderar-se de seu futuro. Não entregando seu destino nas mãos de algum intermediário, mas produzindo sistematicamente as ferramentas que lhe permitirão constituir-se em coletivos inteligentes, capazes de formular seus problemas e apoderar-se de seu próprio desenvolvimento .

Quanto às barreiras de uso, os instrumentos digitais contemporâneos são cada vez mais fáceis de manejar. A título de comparação, recordemos que o sufrágio universal supõe a alfabetização dos cidadãos. Ora, a prática de leitura se adquire com grande esforço, em três ou quatro anos (ou mais) de trabalho assíduo, em instituições especializadas e bem caras para a coletividade (as escolas). A capacidade mínima para navegar no ciberespaço se adquirirá provavelmente em tempo muito menor que o necessário para aprender a ler e, como a alfabetização, será associada a muitos outros benefícios sociais, econômicos e culturais além do acesso à cidadania.

O processo de mudança para uma maior aproximação da sociedade com a política é gradual e as barreiras que a impedem estão sendo quebradas dia a dia. Cada vez mais o povo está conectado, em tempo real, e exigindo mudanças. A sociedade não quer mais participar de quatro em quatro anos, não querer mais um sistema do passado, não aceita mais um modelo que não os escuta, que apenas têm voz no voto confirmado pelo título eleitoral. Não querem mais essa democracia que não sabe ouvir o povo.

A população quer participar, quer ser parte, chegou a hora de uma democracia do povo, pelo povo e para o povo, ajudando, em um novo mundo digital, a decidir o futuro do Brasil. Como prova desse desejo basta observar os movimentos sociais que eclodiram no mundo inteiro. No Brasil, as manifestações de 2013 deixaram como grande legado uma série de movimentos e coletivos que lutam por engajar as pessoas e permitir sua participação nas decisões que afetam o futuro do país. A essência da política começou a ser resgatada, o reencontro entre os jovens e a política criou um momento de efervescência onde as discussões políticas passaram a fazer parte do dia a dia. Os jovens começaram a gerar conteúdo, sem intermediários, sobre os processos políticos e se sentirem responsáveis por mudanças na sociedade, tendo consciência de que a atuação política deve ir além do voto.

A política precisa acordar e se reinventar, disponibilizando meios para sintonizar as agendas societais oriundas da ação coletiva autônoma e as agendas estatais para as quais já existe recurso público mobilizado. Ações iniciais nesse sentido podem ser observadas na Espanha, onde o Partido Podemos e o Ahora Madri começam a disponibilizar meios para que a população formule seus próprios problemas e estes sejam priorizados pelas autoridades. Esse parece ser um caminho para que no futuro a sociedade possa se apropriar de seu próprio desenvolvimento sem a necessidade de intermediários.

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Gustavo Warzocha Fernandes Cruvinel
A Sociedade Conectada na Política Brasileira

Cientista da computação, Especialista em Redes Sociais Digitais e Mestre em Ciência Política