De onde viemos e para onde vamos: um contexto certeiro da mulher no mercado de trabalho

Gabrielle Estevans
TEAR
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11 min readApr 23, 2018

Por Nana Soares

O tempo é um bem valioso e disputado, o que nos coloca numa posição de tomada de decisões constantemente. Você acaba de decidir ler esse texto em vez de fazer qualquer outra coisa na internet, por exemplo. No capitalismo, o trabalho nada mais é do que trocar nosso tempo por dinheiro. Pensar assim é importante para que possamos manejar nossas carreiras e avaliar o que faz sentido para nós. Isso é ainda mais importante e difícil quando lembramos que o mercado de trabalho não é um mar de rosas para as mulheres (só no dia 8 de março), funcionando de maneira inflexível e nada acolhedora, forçando nossa saída a todo custo.

Não é exagero. O trabalho e todos os seus ônus — como o reconhecimento social, prestígio profissional e satisfação pessoal — não vieram de graça para as mulheres, menos ainda para mulheres negras, indígenas, imigrantes, com deficiência ou pertencentes a outras minorias (entendidas aqui como grupos excluídos das esferas de poder). Foi preciso muito debate, protesto e reivindicação para formalizar direitos — e nem de longe eles significam igualdade.

Embora com melhorias inegáveis, sabemos que o mercado de trabalho ainda é um campo hostil e torturante para muitas de nós, mulheres. Seguimos resistindo e transmutando esse cenário, graças a uma rede de agentes comprometidos com a mudança. São pessoas, projetos e ações que estão na linha de frente para garantir nada menos do que nos é de direito: a igualdade. E é nesse horizonte que nasce a TEAR, uma rede de iniciativas femininas, conectoras de pontos e articuladoras de oportunidades para mulheres. Queremos acolher e impulsionar os movimentos das mulheres pelo mundo e, para isso, entendemos que, antes de tudo, é preciso compreender o contexto em que estamos inseridas — e, aí sim, modificá-lo.

Os primeiros passos

Basta lembrar que foi apenas em 1827 que as meninas (brancas) puderam oficialmente frequentar as escolas no Brasil, permissão que levou 72 anos para se estender às universidades. E mesmo essas conquistas não visavam a real emancipação feminina e sua inclusão no universo do trabalho, pois partiam do princípio que uma mulher educada era uma mulher mais apta para as funções domésticas.

No entanto, pensar que a mulher esperou decretos para poder trabalhar é uma visão limitada, já que para as famílias pobres (muitas das quais formadas por mulheres negras) isso nunca foi uma opção. Tanto é que em 1872, época do primeiro recenseamento geral do Brasil, as mulheres representavam 76% dos operários nas fábricas. E a permissão para trabalhar fora sem a autorização do marido só veio em 1943 com a CLT. Até então, as mulheres casadas eram consideradas “civilmente incapazes” pelo Código Civil e as filhas “desonestas” poderiam até ser deserdadas.

No século XX, com as mulheres mais inseridas no mercado de trabalho (especialmente nas atividades agrícolas, indústria e emprego doméstico remunerado) muitos direitos foram formalizados, — como o direito ao voto (1932), e a licença-maternidade (1934) — , mas todos eles perdiam espaço com as frequentes mudanças de Constituição que ora eram mais permissivas com as brasileiras, ora mais restritivas.

Também vale citar outras conquistas significativas, como a proibição da demissão de gestantes (1934), a proibição das diferenças salariais por discriminação de sexo, idade, nacionalidade e estado civil (1943) e o CPF para mulheres (1962).

Com a Constituição de 1988, a licença-maternidade estendeu-se para 120 dias. Também foi com essa Carta Magna que finalmente tivemos garantida a igualdade entre homens e mulheres em todos os aspectos, inclusive o salarial.

Determinação esta que embora importante não saiu da teoria, já que ainda hoje as mulheres ganham em média 26% menos do que os homens, segundo levantamento de 2018 do IBGE a partir dos dados da PNAD. O abismo aumenta se compararmos o salário de homens brancos e mulheres negras. Neste caso, elas ganharam em média R$1283 por mês em 2016, enquanto os homens brancos ganharam R$3087.

Mesmo com ensino superior, a renda deles é mais que o dobro das mulheres negras com o mesmo nível de ensino.

As muitas nuances da desigualdade salarial

Quando se fala em desigualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho, geralmente a diferença nos salários é o primeiro assunto a vir à tona. Não sem motivo, já que escancara como a situação ainda está longe da ideal. Mas o que nem sempre fica claro é que a desigualdade salarial é a consequência — e não a causa — de toda uma gama de discriminações que atingem as mulheres. E como explicar que a metade que mais estuda no país (em média 8.2 anos, contra 7.8 dos homens, segundo o IBGE) é a pior remunerada e mais vulnerável no mercado de trabalho? Uma olhada mais atenta e é possível apontar vários fatores que constroem esse cenário:

As mulheres concentram-se em áreas menos valorizadas do mercado e das empresas

Embora isso venha mudando, historicamente as mulheres ocupam-se de áreas relacionadas a cuidado a à reprodução da vida, que ainda remetem aos velhos estereótipos de gênero e da divisão de feminino/masculino em espaço privado/arena pública. São os setores de educação, saúde, assistência social, serviços domésticos e alimentação. Como tudo que é relacionado ao feminino é menos valorizado, as áreas “delas” têm rendimento médio menor do que campos relacionados tradicionalmente ao masculino, como infraestrutura, indústria, matemática e tecnologia — áreas que apenas recentemente começam a ser ocupadas por mulheres, que ainda são minoria.

Neste caso, é importante lembrar o exemplo da programação: na década de 70, cerca de 70% dos alunos de Ciência da Computação da USP eram mulheres. Essa era uma profissão não valorizada. Com o tempo, conforme o campo ganhou importância estratégica, as mulheres sumiram das graduações, representando 15% dos alunos da instituição em 2016. E esse padrão não é exclusivo de uma única universidade.

No outro lado da história está o trabalho doméstico remunerado, há séculos delegados às mulheres, especialmente as negras. Os homens são apenas uma minoria do corpo de funcionários da área no Brasil, que em 2005 empregava impressionantes 17,4% de todas as mulheres que declaram ter ocupação. Desnecessário dizer que sobram abusos e faltam direitos. Estes, aliás, só foram plenamente conquistados em 2013, com a PEC das Domésticas, que objetivou profissionalizar a prática tão comum nos lares brasileiros desde a escravidão, assegurando o recolhimento de FGTS, adicional noturno, entre outros direitos. Adiantou, mas não sem o mercado encontrar sua maneira de continuar discriminando profissionais já vulneráveis, pois com a obrigação dos vínculos trabalhistas, aumentou de 30 para 50% a proporção de trabalhadoras diaristas no País, segundo dados do IBGE de 2011 e 2015.

Liberdade, pero no mucho: a dupla jornada

Quando se diz “trabalho”, as estatísticas englobam somente aquele considerado produtivo à sociedade e que entra na conta do PIB, deixando de fora os cuidados necessários para a existência e manutenção das pessoas. Assim, os números mostram que as mulheres trabalham menos horas por semana do que os homens, mas apenas porque desconsideram o trabalho doméstico não remunerado, muito mais praticado por elas do que pelos parceiros do gênero oposto. Se entrasse na conta, as mulheres superariam em muito as horas trabalhadas pelos homens.

Esse é um padrão em todas as pesquisas do gênero e, segundo a Organização Internacional do Trabalho, em qualquer lugar do mundo, seja a região desenvolvida ou não. Um levantamento feito pela entidade em 2016 a respeito das tendências das mulheres no mundo do trabalho aferiu que elas realizam, em média, pelo menos 2,5 vezes mais tarefas domésticas do que os homens. A organização alerta como essa desigualdade cultural limita as mulheres a trabalhar mais horas em um trabalho remunerado.

A dupla jornada passa a ser um problema depois que as mulheres ganham espaço no mercado de trabalho, pois esse avanço não causou a redistribuição das tarefas domésticas. Na verdade, não teve impacto no cotidiano dos homens, sendo apenas uma função acumulada pelas esposas, mães e filhas. É uma face cruel das desigualdades porque ao ocorrer na esfera privada nem sempre fica visível no mercado de trabalho tradicional.

O desejo da maternidade pode ser um pesadelo profissional

Se a dupla jornada é exaustiva, o que dirá, então, da tripla jornada, quando também recai sobre a mulher boa parte do ônus de cuidar dos filhos. É mais um aspecto cultural com grande interferência no futuro profissional das mulheres.

Sim, nossa sociedade entende que é papel somente das mães ficar com os filhos. O maior exemplo é a licença-maternidade de 120 dias (prorrogáveis a até 180) comparada com os míseros 20 dias corridos da licença-paternidade. São elas as chamadas pela escola, as responsáveis por levar ao médico e também são elas as acionadas em qualquer emergência. São elas que pedem flexibilização dos horários para encaixar todas estas tarefas em sua agenda, o que tem impactos como redução da jornada (e portanto do salário), dificuldade de comparecer a eventos externos e viajar pela empresa (e portanto de cultivar networking).

Também torna as mães as candidatas mais prováveis à demissão e menos prováveis à promoção. Talvez seja onde fica mais evidente como o mercado de trabalho tradicional é inflexível, pensado por homens e para homens, com extrema dificuldade de acolher diferentes demandas e estilos de vida.

Políticas de proteção à maternidade, como o direito à creche e as licenças parentais, são protagonistas das lutas feministas há décadas. Apesar das proteções legais e dos direitos duramente conquistados, a maternidade ainda é um dos maiores obstáculos para a vida profissional de quem se aventura a criar alguém para a nova geração: as mulheres com filhos fazem mais entradas e saídas em suas carreiras profissionais, como comprovado em uma pesquisa recente da FGV, que observou que 48% das mulheres são demitidas até um ano depois do nascimento de seu bebê. E a desigualdade começa ainda antes da maternidade, já que não são raras as vezes em que mulheres jovens e/ou recém-casadas são preteridas para uma vaga porque “correm o risco” de engravidar em breve.

Viés inconsciente. Precisamos falar sobre ele

Os vieses inconscientes são a base de muitas desigualdades no dia a dia profissional das mulheres e que podem ter grande impacto a longo prazo. Eles são o conjunto de valores e ideias que carregamos conosco previamente e que, mesmo sem percebermos, impactam nossas escolhas e ações. Por exemplo: por conta dos papéis tradicionais de gênero, podemos entender como dedicado um pai que tira uma folga para ver a apresentação de um filho, mas como profissional relapsa a mãe que faz o mesmo. Da mesma forma, muitas vezes um posicionamento firme do chefe é visto como grosseiro se cometido por uma mulher e normal ou apenas firme se cometido por um homem. Outras nuances menos visíveis dos vieses inconscientes são: as mulheres precisam dar mais provas de que realmente entendem de um assunto; são mais interrompidas em reuniões do que os homens; são menos inclinadas a pedir aumento (e pedem valores mais tímidos); e só são promovidas depois de provar seu valor enquanto colegas homens são promovidos como uma aposta da empresa.

E por falar em papéis tradicionais não podemos esquecer do assédio moral e sexual, práticas ainda naturalizadas no ambiente profissional, muito agravadas pela existência de hierarquias. Felizmente, elas têm sido alvo de reflexão e denúncias. O assédio é frequentemente a causa de trocas de emprego e prejudica o rendimento da profissional envolvida.

Ao lado da área de atuação escolhida pelas mulheres, da dupla jornada e da falta de apoio à maternidade, os vieses inconscientes constroem esse cenário em que quanto mais alto o nível hierárquico, menor a presença feminina e maior a desigualdade de salário entre elas e eles.

Acabar com os vieses inconscientes é um processo. O primeiro passo é ter consciência de que eles existem e refletir sobre o quanto podem estar afetando nossas escolhas.

Empreendedorismo, substantivo feminino

Com um mercado tão impermeável às mulheres, não é de se estranhar que sejamos maioria entre os novos empreendedores do Brasil. Apesar do imaginário de empresário ainda estar muito associado a um homem, são as mulheres que estão tomando esse campo — não sem desafios.

As pesquisas anuais da Global Entrepreneurship Monitor (GEM) no Brasil mostram que cerca de metade das mulheres que parte para o empreendedorismo o faz por necessidade e não por oportunidade. Isso quer dizer que, na prática, decidem empreender por não ver alternativas no mercado tradicional. Faz sentido, considerando que no Brasil as mulheres sempre foram mais afetadas que os homens pelo desemprego e são maioria entre a população não ocupada. Os dados da PNAD Contínua do fim de 2016 mostram que as mulheres são apenas 43,3% da população economicamente ativa, mesmo sendo 52,3% da população em idade ativa. Esse número não engloba apenas o desemprego, mas também as donas de casa, mulheres em licença-maternidade e quem opta por não trabalhar.

O empreendedorismo é um campo incrível e cheio de oportunidades para as mulheres, mas não deveria ser a última opção. Em pleno século XXI, a inovação é questão de sobrevivência para o mercado e para os trabalhadores, não só os que trabalham por conta própria. Mas se não há espaço nos ambientes formais e consagrados, pelo menos há um outro universo disposto a acolhê-las, com uma rede cada vez mais diversa.

O Brasil possui um dos maiores ecossistemas de startups em exponencial crescimento do mundo, passando, em quatro anos, de 2.519 startups registradas na Associação Brasileira de Startups para 4.273. O que isso significa? Que o empreendedorismo veio para ficar e é uma opção viável e atrativa para brasileiros e brasileiras que reinventam o mercado de trabalho. E considerando como esse mercado sempre nos tratou, não há motivos para não desejar essa reinvenção.

Um novo futuro no horizonte

Felizmente, já são muitos os atores comprometidos a mudar nossa realidade ainda injusta, buscando equidade, fortalecendo as mulheres e exigindo respeito nesse campo tão importante de nossas vidas como o trabalho. Foi por isso que a ONU Mulheres e o Pacto Global das Nações Unidas criaram os Princípios de Empoderamento das Mulheres (WEPs). Os WEPs são princípios para o meio empresarial baseados em práticas e insumos colhidos do mundo todo e que orientam sobre como fazer do ambiente de trabalho um local mais igualitário para as mulheres.

As sete orientações dos WEPs para as empresas enfatizam o que já sabemos — e apoiamos: empoderar mulheres e promover a equidade em todas as atividades sociais e econômicas fortalece os negócios, a economia e a vida de homens e mulheres. Uma empresa do futuro, preocupada com a sustentabilidade de seu negócio e com o bem-estar de suas pessoas, compromete-se com os seguintes pontos:

  • Estabelecer liderança corporativa de alto nível para a igualdade de gênero.
  • Tratar todos os homens e mulheres de forma justa no trabalho — respeitar e apoiar os direitos humanos e a não discriminação
  • Garantir a saúde, a segurança e o bem-estar de todos os trabalhadores e as trabalhadoras
  • Promover a educação, a formação e o desenvolvimento profissional das mulheres
  • Implementar o desenvolvimento empresarial e as práticas da cadeia de suprimentos e de marketing que empoderem as mulheres
  • Promover a igualdade através de iniciativas e defesa comunitária.
  • Mediar e publicar os progressos para alcançar a igualdade de gênero

Nós da TEAR também estamos comprometidas com essa missão.Temos convicção que este futuro possível já começou e queremos tecer caminhos para que mais mulheres — quaisquer mulheres — façam parte dele. A casa TEAR, que chega em breve em São Paulo, interliga mulheres empreendedoras em busca de um espaço de conhecimento, conexão e crescimento pessoal e profissional. Entendemos que é também pela ação do coletivo que mudamos nossas histórias.

A transformação já começou, e todos e todas têm a ganhar com ela. Quer entender como fazer parte? Escreva para a gente em ola@redetear.me

Nana Soares é jornalista freelancer focada em temáticas de igualdade de gênero e violência contra as mulheres. Possui um blog no Estadão que discute gênero, violência e sociedade e é fundadora do podcast Pop Don’t Preach, sobre feminismo e cultura pop. Acha que desenvolvimento sem igualdade de gênero não é desenvolvimento.

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Gabrielle Estevans
TEAR
Editor for

amada pensadora a tensionar as cordas da reflexão, é o que meu pai costuma dizer.