Empreendedorismo na periferia

Gabrielle Estevans
TEAR
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7 min readJul 21, 2018

Porque favela é palco de luta, resistência e inovação

Por Juliana Lima

Do alto do morro é possível enxergar: grandes mulheres estão reescrevendo seus destinos e não estão sozinhas. Levam, com elas, outras de nós. Na periferia, empreendedoras criam sua própria inclusão, flexibilizam suas jornadas de trabalho e promovem a transformação de suas vidas, famílias, comunidades. Seguem de mãos dadas umas com as outras e é a representatividade de cada uma delas que faz com que os olhos do que chamamos de elite se voltem para onde, antes, era perigoso e afastado. Sai de cena a favela estereotipada como o pior lugar da cidade e entra em jogo um espaço plural de revolução.

Clariza Rosa é uma dessas mulheres que se fizeram ver. Acostumada a se movimentar entre o Morro dos Macacos, periferia do Rio em que nasceu, à Zona Sul, onde cursava Publicidade na PUC/Rio como bolsista, foi a experiência no lado oposto (e nobre) da cidade que despertou nela a vontade de criar algo voltado para a favela. Diferente de muitas histórias, quis resgatar o que estava aprendendo da ponte para lá — um espaço marcado por inúmeros privilégios — e aplicar para transformar a realidade do lugar de onde veio — cravado por tantas desigualdades.

Clariza Rosa, publicitária, empreendedora e sócia da Jacaré é Moda

Desenhando esse desejo, Clariza conheceu Júlio César, fundador da Jacaré Moda, que, à época, ainda era um projeto de moda dentro da Favela do Jacaré, com foco em concursos de beleza para encontrar talentos na periferia. Com o background de trabalho com estratégias de marca, Clariza percebeu, ao organizar um desses concursos com seus sócios, que era preciso falar do que vinha antes da beleza para repaginar esse conceito. Foi exatamente aí que nasceu o que a Jacaré é hoje: um negócio que trabalha o viés da formação e do empreendedorismo a partir da identidade de mulheres e homens negros que moram nas favelas do Rio, e que quer ser reconhecido como uma aceleradora que potencializa talentos e busca fomentar economicamente esse lugar rotulado pelo preconceito e exclusão.

Resistance: Rio’s Different Face of Fashion — Papel&Caneta + Jacaré Moda

Resistir, inspirar e impactar

Ser a transformação sem perder a essência de onde viemos, propondo a revolução na qual a gente mesmo acredita. Isso significa resistir para ocupar lugares onde disseram que não podíamos estar. Significa que estamos pautando tendências, incomodando, trazendo quem quer avançar junto. Hoje, mais do que nunca, a vontade da Clariza é esta: mostrar ao mundo que a favela existe como palco de liderança, não somente para o segmento da moda, mas como uma referência realista da população brasileira — o que não é uma tarefa fácil. Para ela, o cenário de aceitação da sua empresa na sociedade patriarcal, machista e racista é complexo, ainda mais quando você é uma mulher negra que olha para a periferia e quer causar impacto social, financeiro e intelectual.

Por que, afinal, de que adianta muita gente falar que a Jacaré Moda é um negócio relevante e transformador se o dinheiro não chega até eles?

Clariza acredita que a questão da aceitação perpassa, sutilmente, esse lugar que mantém as classes sociais em posições bem estabelecidas para que não se misturem. Por isso, seu sentimento reflete o grande (e às vezes, doloroso) desafio das mulheres negras que voltam seus olhos para a favela, cavando os lugares e as oportunidades que ocupa, ao mesmo tempo em que encontram inúmeras barreiras para acessar outros espaços. Um dos obstáculos? Medo de, em algum momento, esquecer. Clariza quer mostrar “para o mundo de fora” a potência que a favela carrega, mas traz consigo a delicadeza de quem olha para as outras pessoas com afeto: não quer, jamais, desconsiderar a realidade cruel dos seus, daqueles que acumulam tão facilmente promessas não cumpridas, impedimentos e dores.

“Falta os brancos levantarem de seus lugares e cederem espaço para que as pessoas pretas façam acontecer, mostrem seu potencial.”

Nesse contexto urgente, de uma periferia que merece ter voz e vez, Clariza relata que o que falta acontecer para que o reconhecimento seja real passa por caminhos (ainda) utópicos, englobando o fim do racismo, da homofobia e da opressão. E esse trajeto começa a ser desenhado quando negros passam a ocupar lugares de destaque em suas profissões — mesmo que ainda exista uma longa caminhada pela frente até que o dinheiro circule nas mãos do povo. Hoje, abrir portas para o afroempreendedorismo significa, para os brancos, abrir concorrência. Mas com negros assumindo a liderança dentro de grandes empresas, essa realidade pode mudar, causando o impacto positivo necessário para alavancar os territórios populares.

Educação como barreira (e instrumento)

A história de Clariza, como de tantas outras mulheres da periferia, joga luz nas dores e dificuldades de se empreender na favela. Hoje, o Brasil ocupa a 56ª posição, entre 65 países avaliados sobre educação empreendedora, e a tradução desse número é a dura realidade dentro e fora dos limites periféricos: os jovens não aprendem na escola como desenvolver a habilidade de criar novos negócios. Resta a eles, então, buscar tal capacitação na vida, enfrentando as barreiras do desconhecimento, da linguagem não acessível, da falta de oportunidades profissionais, do preconceito.

Ilustração exclusiva para TEAR, feita pro Priscila Barbosa

O resultado dessa equação sem perspectivas para muitas mulheres negras e brancas, que nem sequer puderam terminar seus estudos ou frequentar uma escola de qualidade é aprender com os tombos e extrair deles lições que professor nenhum poderia ensinar. Da pobreza, tiram inspiração para um crescimento econômico sustentável, construindo um ambiente de transformação dentro de suas comunidades e tornando-se exemplos de quem cansou de esperar e decidiu agir. Assim, assumem a responsabilidade de expandir fronteiras para mostrar que, sim, são capazes de liderar não só suas famílias, mas seus próprios negócios.

Empreender para protagonizar

Do lado privilegiado, nobre e elitista, querem que a periferia se adeque aos padrões sociais para ser reconhecida como merece. Mas Clariza e tantas outras personagens estão na linha de frente para que esse jogo se inverta: é o mercado que tem de olhar para a favela e buscar maneiras inovadoras de se encaixar na diversidade que dela emerge. Subindo as ruelas do morro, não é só violência, drogas e balas perdidas que se encontram pelo caminho, mas muita beleza, talento e identidade própria. Entre os mais de 12 milhões de moradores das favelas brasileiras, as mulheres têm inovado cada vez mais em suas iniciativas empreendedoras, expandindo oportunidades de negócios e de crescimento pessoal, além de fortalecer a economia local — já que 63% desses moradores sonham em abrir suas empresas dentro da própria comunidade, o que gera mais de R$ 68 bilhões de renda anual. Só que isso não significa que o cenário é muito favorável às mulheres da periferia: empreendedoras ainda encontram dificuldades de acesso à capital e investimento — e essa é só uma ponta do iceberg de preconceitos que enfrentam. Não é fácil, mas você acha que vamos parar?

“Sociedade em choque eu vim pra incomodar

Aqui o santo é forte, é melhor se acostumar

Quem foi que disse que isso aqui não era pra mim se equivocou

Fui eu quem criei, vivi, escolhi me descobri e agora aqui estou”

Trecho de música de Karol Conka

É o poder!

Assim como Clariza, muitas outras mulheres protagonizam histórias que merecem ganhar as ruas para além das favelas — e que têm muito o que ensinar. No Morro da Mangueira/Rio, por exemplo, o Nêga Rosa, comandado por Érica Portilho, escreve capítulos de transformação social carregados de memória cultural e afetiva, em um projeto que atende mais de 200 mulheres em outras comunidades através de oficinas, de aprendizado, de produção manual e compartilhamento. O coletivo paulistano Nós, Mulheres da Periferia, criado por Semayat, tem como missão dar visibilidade às mulheres da periferia, impactando os territórios populares através da comunicação digital, exercendo um jornalismo independente, transparente a apartidário, feito por quem é nascida e criada na favela. A AfrôBox, uma ideia da Élida Aquino, é o primeiro clube de beleza diversa do Brasil voltado para pele negra e cabelos crespos. Izabella Aurora é outra empreendedora por trás de uma marca de sucesso, a A-Aurora, que produz sapatos com design contemporâneo para valorizar a identidade e a história da mulher brasileira. E se questionando sobre o que é a tecnologia para a mulher favelada, Thamyra Thâmara, do Complexo do Alemão, criou o GatoMídia, um espaço de aprendizado em mídia e tecnologia para jovens negros e moradores de regiões populares, incentivando-os a produzirem sua própria comunicação, redes e conexões.

Lutar juntx!

Favorecer a economia criativa feminina, fomentando iniciativas como a de Clariza e de tantas outras mulheres que unem a periferia ao resto do mundo, é uma das maiores missões da TEAR, espaço em que as ideias compartilhadas têm um poder transformador. Porque aqui a gente caminha de mãos dadas. E verdade seja dita, sabemos que as dificuldades vão aparecer, que os primeiros passos podem ser dolorosos, que portas se fecham. Mas elas também se abrem: nossas portas estão escancaradas para conectar mulheres que protagonizam suas próprias histórias. Aceita o nosso convite para acelerarmos umas às outras? Vamos juntxs!

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Gabrielle Estevans
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amada pensadora a tensionar as cordas da reflexão, é o que meu pai costuma dizer.