Crônica de um eu despedaçado

Rodrigo Sérvulo
a terceira margem
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2 min readMay 16, 2016

Cheguei em casa, desliguei todos os aparelhos que pudessem me conectar a uma outra realidade que não a minha própria presença. Fui fazer as coisas que costumo: cozinhar, ver o que está sujo, o que falta na geladeira, se há roupas limpas para vestir no dia seguinte. A pia estava cheia de pratos, e precisava lavá-los; alguns livros estavam lá na escrivaninha, lidos pela metade, as roupas estavam lá, prontas para serem vestidas. Decidi ler.

Entre uma frase e outra senti um certo prazer em poder estar ali, compartilhando comigo mesmo algumas ideias. Algumas absurdas, outras agradáveis, umas cômicas e outras trágicas — ideias que habitaram minha leitura e me tirou daquele livro para um lugar só meu, mais meu que a sala onde estava, mais meu que aquele livro, mais meu que o meu próprio lugar, mais eu que tudo, um eu sem a exaltação do ego.

Me assustei comigo mesmo. E eu estava curtindo compartilhar aquilo, eu de frente para mim, eu me lendo, eu comentando as ideias que eu tinha, criticando o que havia pensando comigo mesmo sobre algumas coisas, eu contra eu, eu fora eu, eu anti eu, ante eu, eu pró-eu.

Foi aí que pensei que muitas vezes esquecemos do eu porque estamos ocupados falando de si.

Foto: Pedro Andrade

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Rodrigo Sérvulo
a terceira margem

Potiguar, radicado em São Paulo. Autor d'O diário de âncoras (2015); Casa é o seu 2º livro, resultado de mudanças, viagens e experimentos na escrita e culinária