Foto: Pedro Andrade

Diário de classe

Guilherme Henrique Cavalcante
a terceira margem
4 min readMar 13, 2016

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– Professor, me desculpe, mas num deu pra vim na sua aula semana passada não. Nem na outra semana…

– …

– Ai, professor, tanto problema… tanta coisa errada…

– …

– Meu filho, professor… meu filho, ele tava doente, professor… o bichinho… ele estuda tanto… E da sexta pro sábado, eu sozinha com ele em casa, professor, e era tarde da noite, duas da madrugada e ele, professor, deu nele o ataque. A crise. O senhor não sabe, professor… o ataque, e ele tava na rede e se levantou… mas ele… ele no ataque nunca tinha se levantado da rede… ele dorme em rede… e o ataque sempre pega dormindo.

– …

– Ai, num posso falar, professor… não é bom… Eu peço tanto a Deus… tanto, professor… a crise deu nele dormindo e depois ele acordou e não lembrou de nada, professor… ele mordeu a língua. Mastigou. Foi tanto sangue… e eu sozinha em casa…. e o senhor sabe como são os hospitais? E como eu ia levar esse menino prum hospital?… Ele é forte… assim como eu… ele é menos aqui, mas tem umas pernas grossas, ele não é gordo… e eu sozinha pra sustentar esse menino. Chega dá uma pena, ele tão estudioso e tanta gente ruim no mundo… e esse ataque que dá nele e o bichinho todo se tremendo, suando, gemendo que parece um desesperado, professor… Ele estuda informática, professor… tem 20 anos… sabe, eu tenho que cuidar mais dele, professor. Porque ele sai tão cedo e eu faço o almoço dele e boto na marmita e o suco dele e tem o remedinho que eu guardo na mochila dele… o ataque pode pegar ele na rua!

– …

– Não é nem bom de falar, professor… as pessoas podem maldar, querer mal… não o senhor, que é bom, mas os outros… as pessoas são muito ruins, elas pegam e ficam dizendo coisa!… E o meu outro menino tem 18, faz portão de ferro e ficou na casa de um homem que pediu um serviço… um portão… Nunca mais eu fico sozinha de noite em casa… O ataque, professor, é uma crise, professor!… da outra vez ele se vomitou todinho, chega ficou azedo… e depois, o bichinho, o meu filho, ele, professor, ele num se alembra de nada!… só tem uma dor no corpo, na boca do estômago porque ele fica todo doído! Dessa vez foi a língua… Mordida, professor… e era tanto sangue e eu nem lembrei de botar um paninho na boca dele, e ele veio ontem: “mãe, minha língua tá doendo tanto, como seu tivesse mordido…” E eu: “meu filho,” ele nunca lembra, “meu filho, foi do ataque, da crise”. Professor, e eu quase me acabo de preocupação, mas o meu outro menino pega e fala preu esquecer isso. Mas comé queu vou esquecer do meu filho, hein? Só eu sei o que eu passei. Sozinha. De noite. E sem nem poder ir num.

– …

– Sim, professor, um neuro, né assim que diz?!, ele disse… eu vou falar, professor, que num tem gente por perto e o senhor é bom e num malda… ele disse, professor, o neuro, que é um cisto na cabeça, no cérebro, e o cérebro dele nem é todo formado… ou é o cisto que é pegado no cérebro e num dá pra operar.

– …

– Dá não, professor, é pegado… é pegado no cérebro do menino, no cérebro do meu filho, professor. E ele estuda tanto queu tenho até medo de acontecer uma coisa ruim na cabecinha dele, porque é cheia de veiazinha a cabeça da gente, né professor? E isso eu não falo prele não, nem pro outro eu falo… é coisa minha esse medo… porque a coisa normal, como quer Nosso Senhor, é que os filhos enterrem os pais, mas eu tenho tanto medo… E eu peço tanto a Deus, a minha Nossa Senhora… ela é mãe, ela sabe… ai, professor, eu tenho que cuidar mais do bichinho porque ele vai se formar agora no fim do ano. Quer trabalhar… mas eu nem queria que ele se esforçasse…

– …

– Sei não, professor… hein, professor, será que ele tem cura?

– (silêncio)

– Mas eu acredito em Deus e muito… nunca tô só, nem na noite do ataque tava. Professor, eu só espero uma resposta de Deus. Uma ajuda de Deus. Uma luz de Deus… os homens são tão maus, maldam tanto e meu filhinho é tão bom, tão estudioso…

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Guilherme Henrique Cavalcante
a terceira margem

Guilherme Henrique Cavalcante, 25, matutropical: meio sertão, meio litoral - Natal / RN