Maria

Deua Medeiros
a terceira margem
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4 min readJun 7, 2016

Eu entrei na casa de Maria pela primeira vez quando tinha 10 anos de idade. As paredes da casa eram de barro, o chão era de terra. A casa ficava naquela parte da cidade de interior que consegue ser ainda mais pobre, mais quente e mais seca que o resto. A paisagem era de um vermelho quente, vaporizado e penetrante. Muitos bichos correndo pela rua. Eu ia dizer que estavam correndo pela calçada, mas lembrei que calçada era um conceito inexistente nessas partes. Tinha galinha, cachorro, cabra. Eu nunca entendi como as pessoas sabiam o que era de quem, já que os animais sempre estavam pela rua, buscando água naqueles córregos de água servida que se formam nas ruas de onde não existe saneamento. E sempre haviam crianças de nariz sujo e pé esfolado. Correndo atrás das galinhas só de calcinha ou cueca, mantendo a energia que só crianças conseguem debaixo desse calor. Os adultos ficavam à sombra. Varriam a casa, cozinhavam o que tinha pra comer naquele dia. E tinha Maria. Lembro de entrar com estranheza porta adentro da casa de barro vermelho e dar de cara com uma rede suja na sala. Tudo naquilo me remetia à sujeira. As moscas pairando, o chão poeirento, o calor que oprimia até o pensamento. E Maria. Deitada naquela rede imunda, só pele e ossos e algum resto de cabelo pregado na cara pelo suor. Velha. Já não andava nem falava nem fazia nada a não ser balançar naquela rede suja no meio da sala da casa de dois cômodos. A imagem de Maria me é uma pintura completa na cabeça. Apesar da pouca idade, lembro de cada detalhe daquele local e daquela visita. Eu que era acostumada com uma casa grande, com piso de azulejo, com carro na garagem e com cheiro de comida boa na cozinha. Eu que vinha da cidade onde tudo me era possível e permitido. Eu que nunca havia pensado sobre a possibilidade de me faltar comida ou água, como se aquilo fosse uma coisa tão absurda que sequer merecesse meu esforço de pensamento. Eu que vivia em uma bolha maravilhosa, finalmente conseguia colocar os pés fora dela. Eu e Maria, naquela rede suja. As moscas faziam a festa por todo o seu corpo. Eu me lembro de ter sentido uma agonia sem tamanho, daquelas que a gente sente quando a mosca insiste em ficar caminhando na nossa perna. Mas Maria não sentia, ou pelo menos não era capaz de demonstrar isso. Quando as pessoas chegavam perto, como eu fui, elas sacudiam as moscas, que pouco se importavam e voltavam depois de alguns segundos. ‘Como vai, Maria?’ foi a pergunta que fizeram, e não obtiveram resposta. Nem esperavam. Isso de perguntar como vai é só um desses costumes que a pessoa leva consigo e que executa mesmo sem necessidade. Até porque era óbvio que Maria não estava bem. Ela estava paralisada em uma rede imunda, coberta de moscas em uma sala quente e cheia de poeira. Maria estava esperando a morte. E essa foi uma coisa que eu incrivelmente fui capaz de perceber sozinha, no auge dos meus 10 anos de idade. Maria estava ali esperando morrer. Esperando a hora somente de parar de respirar e poder realmente descansar. Maria não tinha enfermeira ao seu lado, não tinha cama nem lençol limpo, não tinha quem lhe virasse o corpo para evitar as feridas que se desenvolvem naqueles que permanecem deitados na mesma posição por muito tempo. Não que a família de Maria a tivesse abandonado. Eles estavam lá. Varrendo a poeira e fazendo almoço, e alimentando Maria de coisas líquidas (o pouco que ela conseguia absorver) e tentando levar a vida sem água corrente e sem descarga. A cena na minha cabeça era suja. Sujeira por toda a parte. Desde o esgoto a céu aberto, até aquela rede encardida onde jazia um ser humano. Foi nesse ponto exato da minha vida que eu acordei pro mundo de fora. Foi nesse momento que comecei a me preocupar com os rumos que tudo tomava. Porque naquela hora minha única vontade era chorar. E eu tive que engolir o choro, porque não queria que ninguém achasse que eu estava sentido pena deles. Eu não queria que ninguém me visse como fraca e delicada e incapaz por causa da minha criação tão privilegiada. Eu passei aquela visita engolindo o choro. As pessoas conversavam e meu olhar ficava se voltando ao de Maria: distante, desfocado, quase suplicante. Eu consigo ver esses olhos perfeitamente dentro da minha cabeça. Uma mosca pousou em cima do olho dela e eu sacudi com a mão. Fizemos a visita e retornamos à casa onde estávamos, andando a pé debaixo do sol quente do sertão nordestino. Eu nunca entendi como as pessoas andavam pra lá e pra cá, e até trabalhavam do lado de fora naquela cidade. Era escaldante. Eu via o chão quase derretendo, soltando aquele vapor quente que parecia querer cozinhar todas as pessoas da terra. As carcaças ressecadas dos sapos que aparecem à noite e por alguma razão não conseguem se esconder durante o dia ficavam espalhadas ao longo do caminho. E eu pensava em Maria, nas moscas, na rede. Como podia a mesma vida levar as pessoas a lugares tão diferentes? Como assim existiam pessoas que viviam normalmente naquelas condições? Caminhava e me questionava, o sol fazendo borbulhar as dúvidas dentro da minha cabeça de criança. Esse dia foi muito marcante pra mim, e hoje eu vejo que foi um ponto crucial no desenvolvimento do meu caráter. O que foi visto, jamais poderá ser “desvisto”. Maria jamais sairá da minha cabeça. Às vezes penso que é ela que segue me norteando e me cutucando nos momentos de conforto e complacência. Espero que ela jamais me permita esquecer as minhas raízes e a minha vontade de lutar por uma vida melhor para todas as Marias das redes sujas nas casas quentes de barro que ainda existem por aí.

Foto: Pedro Andrade

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