No médico

Deua Medeiros
a terceira margem
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2 min readApr 14, 2016

O problema, doutor, é que eu não quero mais comer. Começou de novo aquela tortura. E eu tenho - e uso - todos os meus mecanismos. Coloca a comida na boca, mastiga dez vezes e engole. Um automatismo maquinário que se faz necessário nos dias ruins. Você só tem que colocar essa massa alimentar na boca, bater com seus dentes dez vezes e jogar tudo no tubo que é a sua garganta. Deveria ser simples, mas as vezes a máquina quebra. O tubo entope, trava assim no meio e não desce nada. O gosto forte da comida — nesses dias qualquer comida tem o gosto forte — me impede de conseguir bater os dentes dez vezes. O tubo fecha e aperta a boca do meu estômago (o lugar onde a comida deveria estar chegando). Passo aos alimentos pastosos, como um bebê. Teve uma época que só me alimentava de açaí e papa de aveia, porque NADA que fosse sólido passava pelo tubo entupido. Não quero voltar pra isso, sabe doutor? Não quero me alimentar como um bebê de 7 meses. Mas a máquina está pra quebrar de novo. Muitos sentimentos engolidos à força e que agora se amontoam na entrada do estômago e não me permitem abastecer meu corpo. Porque comida é como gasolina. Se você não comer, seu corpo não anda. Aí voltam os ossos aparecendo, volta o frio, volta a apatia. Volto a ser casca, menos humana a cada dia que passa. E o que mais me irrita, doutor, é que eu sou capaz de observar isso acontecendo, mas não sou capaz de impedir o desastre. É como observar um tsunami. Só me resta filmar. Sou impotente em relação a mim mesma e isso não faz o mínimo sentido. Meu cérebro controla meu corpo, e, teoricamente, eu deveria controlar meu cérebro. Mas somos seres independentes, ele e eu. O que ele quer é determinante, o que eu quero é supérfluo. Na verdade ele que está no comando, sabe? E eu tô cansada. E quando eu tô cansada eu cedo muito fácil. Eu abro mão da autonomia que tenho sobre mim mesma para permitir que a máquina entre em modo automático. O cérebro ganha, mais uma vez. O que eu quero dizer, doutor, é que estou pra entrar em batalha novamente. Entro em desvantagem, fraca, já com vontade de desistir. Porque o pior de tudo é isso né? A incapacidade de lutar. A vontade tão imensa e tão tentadora de simplesmente se entregar e aceitar o seu destino. Mas eu sei, EU SEI, que eu não posso. Eu sei que preciso lutar por mim mesma, doutor, não precisa me dizer. Só estou dizendo que está cada vez mais difícil e que eu queria não ter que lutar mais. Não nasci pra guerra, sabe? Nasci pra tranquilidade, apesar de não saber nem o que isso significa.

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