Nos idos

Bia Madruga
a terceira margem
Published in
3 min readDec 5, 2015

Passou um muito tempo até nos darmos conta de que o que estamos vivendo vai muito mais além do que tínhamos planejado naqueles dias. Nos idos daquele ano, quando nos despedíamos de nossas dores e nos encontrávamos toda quinta e sexta e sábado no mesmo bar (o que todo mundo ia toda quinta e sexta e sábado), quando você dizia que a vida não valia de nada e eu achava e depois tinha certeza por uma noite que não valia muito mesmo. Que eu já tinha perdido tudo, já tinha amado em excesso, sobrou coisa nenhuma no lugar e eu não conseguiria amar de novo, eu dizia, jamais vou conseguir amar de novo, e você perguntava como eu tinha certeza e eu subia na constatação de que eu já não me amava havia muito tempo. E que por isso não tinha como amar um outro sem me amar nem um pouco. Quando tu disse que é só assim que se ama verdadeiramente alguém, sem nenhum amor próprio. É pra ser doentio, eu perguntei, e você disse É completamente doentio e não faz nenhum sentido, Você não sabe disso ainda não?

O contrário de todas as frases motivacionais e otimistas era você, e ainda é. Era você quem eu queria ouvir quando tudo dava errado, porque você teria uma perspectiva pior do que a minha, e isso conseguia ser apenas cômico. E enquanto eu ria e você acendia cigarros e eu pensava que a vida não valia muito mesmo, mas aquele instante e aquela noite valiam, e pessoas assim poderiam fazer noites e instantes valerem a pena, pessoas assim como você, e quem sabe esses instantes, ao longo da vida, somassem num sentido. Podia ser.

Nunca imaginamos que iríamos ficar juntos em vias de fato, em caminho único, num primeiro beijo seguido de muitos, recheados de expectativa nenhuma. E era exatamente isso que nos levava para a frente, penso agora: expectativa nenhuma. Tudo o que veio depois foi lucro, surpresa e desastre: vivemos uma vida inesperada até chegar ao ponto de que não conseguimos mais viver sem o outro, em sentido nenhum (a ausência de sentido parece nos guiar mais que nos ferir).

E agora chegamos ao outro extremo: fazemos planos de um futuro onde tudo dá certo, os passos vêm um depois do outro e não existem atropelos; o emprego vem antes da casa que vem antes dos filhos que vem antes de algum problema inoportuno que talvez aconteça mas que com certeza saberemos como lidar. E a gente planeja e espera. Planeja e espera. E eu desesperadamente já sei que não vai ser assim, que isso não somos nós: os atropelos virão antes, o caminho será tudo menos único, e nenhuma ordem será obedecida. Sei que vamos começar de um jeito meio torto, seguir lidando com problemas absolutos sobre os quais não teremos controle nenhum, e a ordem classe-média-normativa das coisas não vai acontecer dentro de nós. Não tem sido assim desde aquela nossa primeira quinta-feira, sem nenhuma expectativa sobre o tudo.

Nós somos frutos de um grande acaso, meu amor — assim como quase tudo na vida, acasos dos quais as pessoas não se dão conta. A gente só percebeu a tempo de se agarrar e permitir uma história. E será aos acasos que faremos tudo, em seu tempo, sem planos, com as expectativas pelo avesso, com a expectativa nenhuma. Somos assim desde o começo. E é assim que com certeza vamos até o fim: o sempre.

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