O beco

Guilherme Henrique Cavalcante
a terceira margem
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2 min readJul 12, 2016

Era uma rua sem saída. Beco escuro. Lugar com jeito de abandono. Ali, os gays do bairro saciavam as fomes dos rapazinhos que balançavam, aos domingos, os turíbulos. Ali, as mocinhas, com sorrisos virginais, escovavam os dentes. Ali, um crime, muito sangue: facas e tiros. Noite cigana. Morte. O “Beco dos inválidos”.

As velhas balbuciavam inaudíveis, secretas, torciam os narizes tucanudos, evitavam passar pelo beco. Lugar maldito! Lugar de marginais e perdidos! As crianças curiosas: o que tem lá? Nada! Gente do mal! O mau do mundo! As respostas maternais eram exclamativas e rápidas. Cortantes na sabedoria de progenitoras: as famílias alicerçadas na impossibilidade do deslize e do desvio. Os adolescentes, em secretas incursões, faziam as primeiras investidas ao Beco. As descobertas. O encontro com o mais rasteiro e mais brutal e mais pulsante e mais humano de si. O Beco era segredo: todos sabiam de., inquiriam sobre. O Beco não cabia em si. Nada de ensimesmado: sobrava aos seus habitantes. Impregnava, lodoso, as nossas orações e as nossas poluções noturnas.

Singular arquitetura erigida ao balanço da vagabundagem. Ali, longe. Ali, periférico. Água acumulada no chão secular. Chão em que putas velhas terminavam a noite. Paredes de casas abandonadas. Duas habitadas. As paredes tinham olhos. Memória viva dos derrotados: putas e pivetes. Ali, orquestrados pelas muriçocas, contavam-se os ganhos dos roubos. Enfeitavam-se os pescoços, pulsos e dedos com colares, pulseiras e relógios, infinidades de anéis. O Beco e os bêbados: cumplicidade. O Beco e seus habitantes permanentes. Os gabirus e os olhos inquietos, as baratas e as antenas orquestradas, as formigas e o carregamento migalhar.

Chafurdavam nos recantos sombreados pequenos vermes com microscópicos pelos. Restos de tijolos, pedras acumuladas, reboco caído. A delicadeza do Beco: os vermes — borboletas que, fracassadas, nunca vingaram. A singeleza do Beco: o bem-querer das rameiras com doenças venéreas e cabelos oxigenados — borboletas que, fracassadas, nunca vingaram. O “Beco dos inválidos” passou! Oh, meu Deus!, como é cruel a constatação, o beco da escória. Acode, Mãe!, o Beco… o Beco. As mijadas sobrepostas, minha Virgem!, o cheiro ácido do Beco. O beco em mim, o fim de mim. O tempo do Beco: existiu, mas agora, em mim, ecoa a tarde plácida que mata a infância.

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Guilherme Henrique Cavalcante
a terceira margem

Guilherme Henrique Cavalcante, 25, matutropical: meio sertão, meio litoral - Natal / RN