Partida

Bia Madruga
a terceira margem
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2 min readMar 30, 2016

Foram todos embora, e parece mesmo que fui a primeira sair. Não consigo lembrar exatamente quando cheguei, por quanto tempo estive aqui, mas já parti. É impossível me conectar a qualquer assunto essencial e a qualquer existência concreta. É impossível ser concreta agora, e impossível também lembrar quando e por quanto tempo isso foi possível por aqui.

Sou capaz de ficar imóvel por horas seguidas numa mesma posição. Depois de ter tomado um banho frio e um café sem açúcar na sequência, me sento no meio do sofá e posso permanecer por horas que parecerão, sempre, poucos minutos. Assim os dias passam, os anos também: parecem pouco. E nesse tempo cronológico tão longo e psicológico tão curto, vivo assim: desconectada dum tudo, de mim, e talvez por isso vivendo de passado.

Enquanto não consigo me desesperar mais, observo minha cachorra cega que vaga pela casa como quem acaba de lembrar que possui pernas e decide dar um passeio apressado sem destino. Ela vaga sem destino. O café fica frio rápido e eu penso sobre tudo que não sou mais, que não consigo ser, e por quais lugares dentro de mim tenho vagado a troco de nada. Não consigo nem me desesperar por isso. Não mais. E é dolorosamente desesperador, dentro de mim. Como se o estômago gritasse em silêncio, e isso me doesse entranhas acima.

Continuo sentada pensando em tanto sem pensar em nada. A cadela continua a vagar e eu continuo em lugar nenhum, como talvez sempre tenha estado. Ou quase sempre tenha estado. Eu parti já tem um tempo. Fiquei só por isso, por que escrevia essa ficção autobiográfica, onde só existem mentiras de um personagem que criei em cima de mim mesma. E eu acredito em todas elas, em absolutamente todas elas. Todas.

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