Porque eu queria ser Kamyla Matias

aureliano
a terceira margem
Published in
5 min readSep 15, 2015

“Amigo, você lembra de Kamyla Matias?

“Lembro sim, amigo.

“Ela fez um vídeo, esses dias. Ela dançando numa rua escura de uma cidade que eu não sei qual é.

“Sim, amigo. Legal. Ela tá no Rio. Né lá não?

“Não, amigo. Cê não tá entendendo. Ela fez um vídeo dançando com uns balões nessa rua e parece de madrugada. Dançando aquela música do Beirut que tocava numa minissérie da globo, como que é o nome?

“Elephant Gun.

“Ela dança a música de um jeito tão leve e você olha pro rosto dela e ela tá com um sorriso incrível. E lá, dançando mesmo. Na rua. De madrugada. Com balões.

“Entendi… Ela trabalha com o que mesmo?

“Acho que com teatro. Capitu!

“O que?

“Capitu o nome da novela que tinha a música.

Era o dia da formatura do amigo. Eu sempre tinha que apressar o passo da minha mente pra acompanhar a dele que corria em rotações rápidas demais. Dificilmente entendia tudo que ele queria dizer, mas fingia perfeitamente bem. Fomos a uma pizzaria com toda sua família. Ele ameaçou que tiraria a camisa se alguém cantasse parabéns para ele. E ameaçou de novo. E uma terceira vez. Cantaram parabéns. Ele tirou a camisa. Do lado da avó. Mas quem surtou fui eu. “Amigo não amigo não amigo não”.

Cheguei em casa e não consegui fazer muita coisa. Amigo tinha esse jeito de mexer com a minha cabeça de uma maneira muito esquisita e me colocar no limiar da racionalidade. O ato de tirar a camisa tinha a ver com a ressignificação do momento. Com respirar, não enlouquecer e tentar conviver com os protocolos sociais, ou apesar deles. Fiquei processando a situação enquanto pesquisava todas as variações possíveis até encontrar a kamyla em questão e seu vídeo, no facebook.

Há uma linha muito suave entre as coisas que queremos ser e as coisas que damos conta de ser. O vídeo é simples e não tem nada de mais, como eu já esperava, mas mexeu comigo em um lugar muito lá dentro. Na minha constante busca pela felicidade que nada mais é do que uma incapacidade de ser feliz. Na minha caretice. Eu sou careta demais. Passei a noite em seu facebook, vivendo sua vida. E naquele momento eu não queria ser outra pessoa senão a menina que dança com balões.

Mas eu sou eu.

Lucía está em Paraty. Não mandou nenhum postal porque hoje em dia as pessoas não mandam mais postais. Mas seguidamente vemos os desenhos que tem feito de todas as fachadas modestas e paisagens paradisíacas em tons de azul e verde. Parece feliz. Deve estar feliz.

Veio da Argentina para Natal para vender cadernos que ela própria costurava. E de Natal decidiu ir pro Rio. Pra Paraty. Está trabalhando num albergue, eu acho. Não sei se ainda está. Dia desses embarcou num barco pra Angra dos Reis. Angra, já pensou?

Pouco pragmática, Lucía jogava o pó de café usado no ralo da pia, o que hoje nos deixou com a maldita herança de um encanamento esclerosado. Desentupidor na mão, olho pra água acumulada na pia e lembro de Lucía.

Mas Lucía está aqui:

Lucía Ruiz Ilustraciones

“Amiga ela entrou num barco e foi pra Angra.

“Foi.

“Amiga, sei não.

“O que amigo?

“Inveja.

“De Angra?

“Não. Não é de Angra. Nem de Paraty. É maior que isso. É o desprendimento. A leveza. O ritmo. É se permitir passar dias inteiros no processo de uma ilustração enquanto eu só consigo me demorar o mínimo possível. Eu queria ser assim.

Mas, de novo: Eu sou eu.

Sou a pessoa paranóica que fica tentando impedir o amigo de tirar a camisa no dia de formatura em frente à toda sua família. Eu tenho correntes que eu escolhi ter. Carrego o peso de escolhas que eu sei que são minhas. Uma estante ridiculamente abarrotada de livros e um coração cheio de âncoras que não me permite ir pra lugar nenhum. O mesmo impulso que me puxa pra fora é o que me joga pra dentro de novo e vai alimentando minha ansiedade em movimento perpétuo enquanto eu entro em parafuso. Eu sei que se eu quisesse ir, eu provavelmente poderia. Mas não.

Esse não sou eu.

Tudo me dói muito e eu prefiro conhecer, abraçar e expressar essa dor do que fingir que ela não está ali. Ainda não sei se isso é saudável ou não, só sei que está ajudando (eu acho). Tenho feito meus desenhos e tentado levar um dia de cada vez. Um dia de cada vez. Enquanto não posso pagar terapia, vou me valendo da minha companhia, traço e tintas para tentar me entender melhor.

Hoje seria o dia de postar o centésimo desenho do Oi, Aure. Mas eu achei por bem fazer que esse desenho fosse algo menos gráfico. Esse texto é um desenho de quem eu sou. E não quero ser Kamyla Matias, ou Lucía Ruiz. Quero ser eu. E encontrar qual é a minha. Um dia eu chego lá. Por enquanto, aprendi a respirar fundo.

Ajuda bastante.

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