Que lindinha, ela

Themis Lima
a terceira margem
Published in
3 min readMay 16, 2016
ilustração: oiaure

Ser mulher é uma ousadia diária. Em qualquer lugar que se vá, com qualquer roupa que se vista, palavra que se use, caminho que se escolha. É ousadia porque, bruta ou sutilmente, a nossa presença incomoda.

Antes de mais nada, evoco a hegemonia: palavra gramsciana, atemporal e perigosa. É aquela estrutura antiga, empilhada em valores tão velhos quanto o tempo. Sempre estiveram ali, pelo que nos contam. São naturais, indiscutíveis, quase orgânicos. Hegemonia, na verdade, é o poder que consentimos, servimos numa bandeja de prata, porque nunca achamos que foi nosso. E resistir é arrancar ele de volta, questionar o divino e, claro, incomodar.

Existem esferas no nosso belo quadro social que se propõem a vanguarda, berço das novas ideias, palco da diversidade. Mas que reproduzem sorrateiras os problemas crônicos das questões de gênero. O terreno (ou campo minado) que desbravo com espanto é o dos intelectuais de cultura. Aqueles caras de esquerda pra frentex e tal que jamais teriam a intenção de dizer isso aí que você achou que eles disseram.

Do lado de fora, aqui, entre livros, filmes e falas bonitas, não existe essa coisa atrasada que chamam de machismo. Comemos mortadela, não coxinha, não somos farinha do mesmo saco. E se você não pensar duas vezes, vai se ver concordando, relevando o mal-estar, travando sua língua em nome do ego alheio.

Nesse mercado tão bicho-grilo e cabeça-aberta muitas vezes a mulher está ali, faz os corre, trampa bem, mas é café-com-leite. É esmagadora a pressão de um comportamento condescendente que te olha de cima, quase com ternura: que fofinha ela, achando que é gente. Ser escritora, atriz, quadrinista, produtora é um charme da sua personalidade, não seu trabalho. É uma coisa extra que você decidiu fazer além de ser bonitinha. Mas nem precisava viu?

O homem desse meio está tão seguro de que ele nunca faria isso que não percebe a arrogância da própria fala, e o que ele quer que te alcance como elogio vem banhado em um desdém sistemático, diminuidor e exaustivo. E, claro, a guarnição é a piada insinuativa, a mão dissimulada, escondida na ideia de que a sua liberdade sexual é uma porta entreaberta pra ele.

Aqui, nas rodas em que exaltamos a diversidade e pedimos respeito, ainda sobram absurdos que engolimos sem mastigar. E se o mundo é dos homens até nas pontas mais transgressoras do mapa, que dizer dos rincões onde a palavra empoderamento não chega? Fazer livro, que é minha praia, é tarefa de macho. E é diária a sensação de caminhar em mata semi virgem, ainda que amparada nos ombros dos exemplos que tenho, na palavra das mulheres que publico. Fazer trilha em selva fechada arranha a gente, mas a força reside um pouco no cansaço. É preciso se recusar, bater na bandeja, quebrar a estrutura da hegemonia. E existir, só por existir, já é resistência. Ser mulher é uma ousadia diária.

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