Você me pediu para escrever um conto

Guilherme Henrique Cavalcante
a terceira margem
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3 min readJan 7, 2016

Você me pediu para escrever um conto sobre hoje. Hoje, mas, no caso, ontem. Você sugeriu porque a noite estava bonita. ‘Imagina se você nunca tivesse visto isso aqui antes. E olhasse tudo agora.’ Olhei a praça em redor. Imaginei. Mas a primeira visão não me veio. A praça afundada em pecado, os sonolentos carrinhos de cachorro quente, os mendigos rodeando as margens da rua, os gatos lânguidos. Os gatos, conversamos sobre eles. Elegantes, né?! ‘Você já reparou na arquitetura das patas deles?’ Arquitetura das patas… Ora!

Você me pediu para escrever um conto sobre. A noite. A praça. O cheiro dos carrinhos de cachorro quente. A mulher de azul que arrastava, e rimos disso, uma corrente. O conto é essencialmente metalinguístico. Baba de seus extremos aquela metalinguagem de que tanto tentamos nos desvencilhar. Encontramo-nos entre a multidão. Flutuando. Fluindo. Seguindo o fluxo de gente, desaguei em você — este conto é como aquelas coisas que encontramos na rua e das quais nunca falamos para alguém, ou ainda como aqueles pensamentos perversos que temos quando fitamos alguém e nos envergonhamos de nós mesmos. Esse conto é um autorretrato — Dirão os outros que este poderia ser uma carta. Uma confissão. Mas os outros, de mim, não sabem nada. Nunca saberão porque não revelo. Só me mostro a quem comunga comigo do pão sagrado que oferto nas horas agudas de solidão. Os outros.

Você me pediu para escrever um conto. Sobre os outros. E nós estaríamos no conto? A gente sentado meio perto-longe. E a cerveja tem o mesmo gosto de vida apressada. Brindamos à semana que deu certo, apesar de. — suspendo no ar, propositalmente, o complemento — Você respondeu aos meus protestos ‘você aqui que é autorizado a escrever o conto porque você é o escritor’. Mas este conto é uma ode à metalinguagem. Não à gente. Nós não somos dignos do conto. (E quem será digno de um conto?) Este conto é um documento da noite. ‘Eu gosto da noite. Eu gosto de estar no útero da noite.’ Os mendigos especulando. Os pivetes escolhendo a próxima carteira. Os ambulantes derreados, fim de festa, o tédio rasgando a cara de cada um. Os bêbados gritando. E nós não conseguimos ficar bêbados. Nem gritar. Lembra-se do medo? O receio de atravessar a rua vestida de escuro? E o assalto? A menina e os caras… O medo.

Você me pediu para escrever. Um conto. A gente se fragmenta um pouco dentro de cada noite. Somos como os gordos camundongos que saltam das brechas das casas. Somos como as baratas fedorentas. Somos, melhor dizendo, menores do que todos eles. Nós nos retalhamos e também a noite e ninguém tem o direito de fazer isso. Mas eu faço. Rebelando-me contra. Rompo. Rasgo. Encontramos com a menina do rosto angular. Você reparou como, encarando-a frontalmente, o rosto dela é (tri)angular?! ‘Ela é linda, né?!’ Ela é tão abstrata. Assim como o abafado da noite. Protegidos pelo som próximo. Descobertos. E você me repeliu quando engendrei um beijo. Sutil engenharia. Fingi afastamento. Discreto. Sempre finjo. Bem. Me sustento no verbo fingir. E você? Onde você se sustenta?

Você me pediu. Para escrever um conto. Tentei imaginar o enredo. Ora, estamos impregnados de metalinguagem e este conto é também o som estridente de uma sirene. Denúncia da metalinguagem. Flagrada quando corrompe os nossos dias. ‘Por que estou me oprimindo?’ Fitei você em silêncio. Você é tão bonito. Tão proporcional. E eu não gosto de proporções. Demos a esmola, o cara seguiu o caminho dele. Ele disse que era para completar uma passagem para o outro lado da cidade. Senão iria a pé. Mentira, pensei. Demos a esmola. Tive medo de ser assaltado. Meu relógio!, pensei. Ele vai em busca de uma pedrinha, pensei. E o pensamento era o que nos salvava da noite e das suas personagens. ‘Você pensa demais!’ ‘É que já fui muito agredido pela mídia…’ Achei emblemático. Não entendi as palavras. Silêncio. Não havia carros na rua, mas gente. Uma gente estranhamente bonita. E não havia mais praça, mas a espera pela volta. E havia, também, a vontade de um beijo. Mas eu fingia.

Você. Me pediu para. Escrever um conto.

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Guilherme Henrique Cavalcante
a terceira margem

Guilherme Henrique Cavalcante, 25, matutropical: meio sertão, meio litoral - Natal / RN