A vida prévia de Ash Cobalt

Alcimar Veríssimo
A vida prévia de Ash Cobalt
6 min readMar 10, 2017

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Part 5 - Eu me lembro

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“Esta leitura poderia terminar no capítulo anterior, pois é impossível contá-la a partir do momento em que me encontro desacordado após o acidente. Bem, agora que você já sabe como eu esqueci de tudo, está na hora de entender como eu consegui contar essa história”.

Depois daquele dia eu fui socorrido por soldados do Exército alemão e deixado pra morrer num local tranquilo onde ninguém me encontraria. Por sorte eu não morri e fui socorrido por tropas brasileiras que retornavam da batalha no dia seguinte. Apenas no dia 25 de abril, 5 dias depois de passar por várias observações na base em campos italianos, meu corpo foi enviado ainda desacordado aos Estados Unidos para um Hospital em EI Dorado, Kansas. Assim eu me despedi da Itália e nem tive chance de conhecer Milão, uma pena.

No hospital de EI Dorado existia uma ala onde apenas os feridos de guerra eram atendidos. Era um ambiente totalmente diferente dos campos de batalha, mas os personagens eram os mesmos e as histórias também. A cada momento, alguém sem perna ou braço recebia alta, enquanto outro apresentava-se em estado crítico entre a vida e a morte.

A 92ª Divisão de Infantaria Americana seguiu ao longo da costa de Génova, avançando em direção à Turim, com a divisão brasileira à sua direita, que foram os responsáveis por pegar o Exército alemão e italiano de surpresa, forçando seu colapso. E foi no dia 29 de abril de 1945, enquanto todos acompanhavam o desfecho da guerra pelos noticiários da TV, que o General Heinrich von Vietinghoff assinou o documento de rendição em nome dos exércitos alemães na Itália. Todos comemoraram aquele momento histórico na ala do hospital, assim como no resto do mundo. A guerra na Europa finalmente estava próxima do fim e eu ainda estava em coma, perdi o momento mais esperado.

Ala de hospital durante a segunda guerra - Imagem do Google

Naquela ala havia uma médica que conheceu a maioria dos militares que passaram naquele hospital e ficava responsável por aqueles que chegavam inconscientes ou desacordados. Eu fui um dos últimos que cheguei nesta situação, tendo em vista que os próximos a desembarcarem em solo americano estariam vitoriosos. No dia 2 de maio de 1945 a guerra na Europa foi dada como encerrada pelas autoridades. No dia seguinte, em 3 de maio, eu finalmente abri os olhos. A primeira imagem que me veio à cabeça foi a fisionomia do alemão que teria provocado o acidente. Foi rápido como um flash.

Eu não fazia ideia do que estava fazendo naquela cama de hospital. Na verdade eu não lembrava do meu nome, do nome dos meus pais ou de onde eu havia nascido. E foi quando eu avistei a médica entrar pela sala e perceber que eu havia retomado a consciência. Minha primeira reação foi fazer uma cara de desentendido, a segunda foi de levar os olhos até um crachá de identificação em seu jaleco onde havia escrito “ D.ra Veronez”. Até o exato momento eu não sabia nada sobre o amor e paixões de longa data, mas fiquei encantado por aquela linda mulher de olhos puxados, cabelos curtos e uma voz tão delicada que me fez perder a razão por várias e várias vezes num instante de segundo. Na minha cabeça, naquele dia nascia Ash Cobalt.

Alguns dias se passaram e minhas conversas com a D.ra Veronez se tornaram cada vez mais frequentes. Em vários momentos cheguei a perguntar sobre a sua infância. Estava curioso por aquela mulher pela qual eu acabava de me apaixonar. Descobri que seu nome era Júlia Veronez, filha de comerciantes que investiram todas as suas economias na formação acadêmica da filha. Seus pais haviam falecido durante um acidente envolvendo dois carros e ela teria permanecido na cidade até se formar como médica.

Algumas semanas depois eu recebi alta e estava na hora de voltar pra casa. Júlia teria criado um afeto tão grande por mim que solicitou ao Comando do Exército para que pudesse me acompanhar até a casa dos meus pais, onde eu seria entregue de volta a vida normal. A verdade é que ela estava curiosa, pois descobriu na minha ficha que eu teria sido criado em Camp Funston, mesma cidade onde ela nasceu. Chegamos ao bairro onde eu encontraria meus pais pela primeira vez depois da guerra, mas na minha cabeça era tudo novo e eu não fazia ideia de como eles eram.

Ao chegarmos, me deparei com o casal mais louco que eu já conheci. Estavam insanamente bêbados e felizes em ver que eu não tinha morrido, mas lamentaram pelo fato de que eu não lembrava dos bons momentos que tivemos no passado. É claro que esses bons momentos não existiram e eles queriam recomeçar a história de um modo diferente. Louvável, mas falso, assim como o amor deles. Meus pais aproveitaram para matar a saudade e me falar um milhão de coisas sobre o que aconteceu na guerra. Segundo eles, a guerra teria mudado a vida de muita gente, inclusive a minha, mas isso nem precisava ser dito pra perceber. Vi que a Júlia observava com atenção a casa ao lado, que na verdade era a casa onde morou na infância. Ela acabava de descobrir que fomos vizinhos e que eu sempre fui um rapaz apaixonado por ela, apesar de eu não lembrar disso.

Abismada, Júlia passou algumas horas remontando todas as lembranças que começava a surgir em sua mente. Lembrou de quando dançava na chuva, das suas panelas de barro e de quando eu a observava no quintal, mas ela fingia não saber disso. Na infância tudo é ilusão, fantasia, mas agora eu era um homem formado, com um trauma causado pela guerra e mais uma vez, apaixonado por ela. Não demorou muito para que surgisse um amor pelo nosso caso. Júlia queria cuidar de mim e quem sabe um dia, me fazer lembrar de toda essa história. Sendo assim, namoramos por um bom tempo e resolvemos nos casar. Assim eu encontrei um motivo para finalmente descansar em paz com a mulher que eu amo.

Em 10 de setembro de 1993, data em que escrevo esta história com 72 anos de idade, tenho a Júlia ao meu lado, emocionada em saber que agora eu realmente sei de tudo o que aconteceu. Mas eu jamais descobriria se não fosse a única amostra da “máquina do tempo” que ela havia guardado como herança dos seus pais. Pra minha sorte, o produto inovador realmente funcionava. A descoberta foi feita por um alemão de bigode estranho que usava um óculos engraçado em 1981.

Durante minha viagem no tempo decidi não alterar nada na história, mas não esqueci de trazer algumas sacolas de Chapatis, que neste momento degustamos com café. O sabor não é dos melhores, mas a lembrança é o que fica e eu me lembro.

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