O fim da inocência e o despertar do medo de homens

Uma análise sobre o universo feminino de Life is Strange

Ana Paula
a arcádia
9 min readJan 31, 2019

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Desenvolvido pelo estúdio francês DONTNOD Entertainment e publicado pela Square Enix, o game Life is Strange (2015) acompanha a trama da estudante de fotografia Max Caulfield, que descobre possuir o poder de voltar no tempo. Ao retornar à sua cidade natal e reencontrar de maneira inusitada sua amiga de infância, Chloe, cabe ao jogador fazer bom uso de tais poderes na tentativa de salvar Arcadia Bay de um tornado iminente e desvendar o mistério por trás do desaparecimento da popular estudante Rachel.

(spoilers e revelações do enredo a seguir)

Ao assumir a personagem Max, somos logo expostos à sua personalidade e à claras demonstrações de ansiedade e desconforto perante situações sociais. Absorvida em seus próprios pensamentos e armada com seus inseparáveis fones de ouvido, Max mergulha num estado de introspecção enquanto dirige comentários pontuais àquilo que ocorre ao seu redor. Em inúmeros momentos, ela não se enxerga como pertencente à realidade que a cerca e está fora do “padrão” que se espera de uma garota de sua faixa etária. Toda a jornada do game desenvolve sua autoestima e acompanha sua busca desenfreada por identidade, agora munida de um poder capaz de mudar sua relação com as pessoas e o ambiente onde vive.

É comum que jovens na transição da adolescência para a idade adulta se vejam diante do mesmo dilema; e a insegurança colateral de uma cultura opressora as colocam diante de situações em que julgam não serem intelecto e emocionalmente capazes de lidarem sozinhas… por serem mulheres. Na maioria das vezes, nem se é dado conta da origem do problema. Portanto, é essencial abrir os olhos para o fato de que, em ambientes competitivos, como escola, universidade e trabalho, ser mulher tem um peso muito maior do que se imagina. Pressões de todos os tipos são o principal motivo para que muitas deixem de se expressar como gostariam e se resguardem a fim de preservar uma imagem de constante submissão e inferioridade, abdicando de posições de destaque.

Não é novidade que o game lida com assuntos polêmicos e pertinentes à realidade de toda uma juventude atual, desde a prática de bullying até a manifestação de transtornos psicológicos na adolescência. Porém, ao dissecar Life is Strange, percebemos uma abordagem rara — senão inédita — de dilemas exclusivamente femininos; estes personificados tanto em personagens da trama quanto em situações e ocorrências vividas pelas mesmas. A sequência que me levou a escrever este texto ocorre no episódio 5, Polarized, encerramento do jogo. Após tantas idas e vindas no tempo, Max acaba perdendo a razão e se vê num pesadelo. São cenas sombrias e chocantes, e marcam alguns dos minutos mais inesperados, confusos e assustadores da narrativa. Em um dos momentos perturbadores, nossa protagonista Max está presa em um “labirinto” rodeado por diferentes personagens do jogo que, por diferentes motivos, despertaram na jovem a sensação de terror e proferem frases na tentativa de intimidá-la. Note que há um detalhe importante a ser observado na cena: são todos personagens masculinos.

Pode parecer uma informação irrelevante ou uma mera coincidência, porém é importante relembrar que durante o game Max também cria rivalidade com personagens femininas, como Victoria Chase, a mean girl competitiva e arrogante; portanto, se esse fosse o fator determinante para escolher os personagens no pesadelo, ela estaria lá também, não estaria?

Ao mesmo tempo, Warren, estabelecido como melhor amigo da protagonista desde o princípio, ESTÁ na sequência do pesadelo. Diante disso, somos obrigados a dirigir um olhar crítico a essa representação clara de um sentimento à qual mulheres são submetidas em seu cotidiano: o temor por homens. Seja ele seu melhor amigo, ou seu pior inimigo. O peso que o gênero carrega consigo é cultural e persistente, e as consequências do machismo serão sentidas cedo ou tarde, independentemente das circunstâncias.

O contexto que dá margem para tal interpretação é evidente. Max se sente desconfortável em negar as investidas de Warren, sente medo da impulsividade e agressividade de Nathan e Frank, sente-se inferior diante de figuras de poder masculinas como Principal Wells e Mr. Jefferson.

O pesadelo de Max é um reflexo da sua realidade e amadurecimento na condição de ser feminino, cercada de figuras masculinas que a intimidam com comportamentos tóxicos. O desenvolvimento da autoconfiança de Maxine está intrinsecamente ligado a atitudes que a mesma toma ao decorrer da história, confrontando personagens que, direta ou indiretamente, impediram o pleno exercício das suas escolhas pessoais.

Isso não afeta unicamente Max, a protagonista, como também todas as demais personagens de Life is Strange. Além de óbvias constatações que poderiam vir a motivar o sentimento de medo por homens, como sequestro e abuso, há muito além nas raízes do problema. Rachel foi vítima de slutshaming, despertou rivalidade feminina por demonstrar beleza e inteligência, foi sexualizada e objetificada. Chloe tem um padrasto abusivo e obsessivo, manteve uma relação tóxica num momento vulnerável com um rapaz manipulador, possessivo e que pretendia fazê-la acreditar que sem ele em sua vida ela estaria sozinha no mundo. Victoria vê na competitividade feminina uma maneira de alcançar um status de superioridade a fim de despertar olhares e admiração masculina, e consequentemente, subir na hierarquia social.

No encerramento da trama, todas elas acabam por despertar a empatia de Max, pois todas compartilham da mesma condição de existência. Evidentemente, uma não está sujeita a sentir as consequências de tal na mesma intensidade que a outra, levando em consideração que outros fatores viabilizam privilégios e segregam a existência feminina a mais do que uma única e universal realidade — tais como etnia, condição financeira e orientação sexual.

O protagonismo feminino em Life is Strange é necessário e revolucionário, colocando em primeiro plano tópicos incômodos de uma perspectiva não-masculina e desenvolvendo questões extremamente pertinentes à mídia dos videogames, indústria constantemente criticada por perpetuar machismo e manter, em geral, uma postura problemática e pouco inclusiva. Mais do que uma experiência interativa, o game oferece algo muito precioso às garotas: a oportunidade de identificar-se, constatar semelhanças com a sua própria realidade e perceber possíveis atalhos para conquistar o seu lugar no mundo — mesmo que sem os poderes de Max.

Life is Strange é, portanto, uma história sobre a jornada do amadurecimento feminino: o processo da perda da inocência infantil imposta pela convenção social de tornar-se mulher e instantaneamente encaixar-se em padrões pré-estabelecidos do exercício da feminilidade e sexualidade precocemente, subordinando-se às elevadas expectativas impostas sobre jovens mulheres desde muito cedo, e o consequente ingresso a uma realidade caótica, cruel e, diversas vezes, dolorosa.

A habilidade de viajar no tempo é uma mera ferramenta que permite a Max visualizar sua realidade com novos olhos, usufruindo agora de um artifício tentador que lhe confere poder e influência. É a partir dessa experiência que Max Caulfield encontra em si mesma a determinação e a segurança que buscava para optar pelo caminho que lhe convém, e não aquele que lhe foi previamente determinado sem o seu consentimento.

A própria motivação do antagonista principal da trama, o professor de fotografia Mark Jefferson, serve como metáfora para a objetificação de traços femininos pueris e delicados, aliados a vulnerabilidade decorrente de um período de transição conturbado e nebuloso. Em seu diálogo com Max no Dark Room, Jefferson revela sua obsessão em capturar o momento em que a inocência desenvolve-se em corrupção através da lente de sua câmera.

“Oh, Max… I’m so glad you asked that question. Simply put, I’m obsessed with the idea of capturing that moment innocence evolves into corruption. That shift from black, to white, to grey, and beyond…”

Diante disso, nota-se que a inocência que procura só pode ser encontrada em adolescentes exclusivamente do sexo feminino, reafirmando a objetificação e imposição de ideais de feminilidade em jovens mulheres. A corrupção por si só pode ser interpretada como o primeiro contato com a sexualidade ou a imposição precoce de uma postura madura por parte do meio externo, o ponto de virada para que declare-se mulher e desempenhe seu papel em sociedade. A existência feminina oscila entre o preto e o branco: ao mesmo tempo que são incentivadas a preservar uma conduta conservadora e reservada, são objeto de fetichização constante no imaginário cultural masculino. Mulheres não amadurecem antes que os homens. Mulheres são obrigadas a amadurecer antes que os homens.

Para encerrar, quero dedicar atenção especial a uma das personagens que mais reflete todas as consequências expostas durante a análise: Rachel Amber. Tanto dentro do jogo quanto pela própria comunidade de fãs, Rachel é constantemente acusada de ser uma pessoa manipuladora, egoísta e mentirosa. De personalidade forte, Rachel nos é devidamente apresentada no jogo Life is Strange: Before the Storm, que acompanha os dias rebeldes de Chloe em Arcadia Bay anos antes do retorno de Max à cidade.

É importante ressaltar que seu trágico desfecho apenas reforça que Rachel foi uma vítima. Porém, suas atitudes não alimentam o estereótipo de vulnerabilidade feminina popularmente cobiçado: é uma jovem decidida, disposta a conseguir aquilo que quer, extremamente inteligente e observadora, que exerce sua sexualidade livre de amarras e se expressa de maneiras não convencionais – traços não muito celebrados em uma cidadezinha interiorana como Arcadia Bay. O elemento que rege seu signo solar, fogo, representa a intensidade e a instabilidade de seus atos e relacionamentos.

Naturalmente, ainda é uma das personagens mais criticadas de todo o game, mesmo não tendo ao menos a oportunidade de contar a sua versão dos fatos. Isso apenas corrobora para a conclusão de que jovens mulheres, sejam elas reais ou personagens fictícias, continuam a serem julgadas incessantemente por suas escolhas e se concede a elas uma injusta carga de responsabilidade desproporcional à sua respectiva idade — é importante lembrar que Rachel, assim como as outras garotas citadas, não passa de uma adolescente.

A vida é mesmo estranha. Especialmente para as mulheres. E franquias como Life is Strange, mesmo que imperfeitas em alguns aspectos, abrem espaço no mercado para a discussão de gênero e das implicâncias do seu valor em sociedade. Muito além de um game protagonizado por jovens mulheres, é respeitoso ao abordar tópicos delicados e corajoso ao desenvolver dinâmicas complexas que direcionam o olhar do jogador para a existência do conceito da masculinidade tóxica e sua perpetuação nos mais diversos meios. E mesmo quatro anos depois do lançamento de seu primeiro episódio, Chrysalis, o jogo se mantém atual, relevante e aclamado por sua proposta de lidar com temas cotidianos da vida de maneira profunda e reflexiva.

A história de Max é memorável e autêntica, despertando sentimentos genuínos de uma realidade cruciante reproduzida em arte. Tudo isso graças ao trabalho minucioso da DONTNOD ao produzir uma experiência interativa intimista e nostálgica, que convida o jogador a tomar partido em conflitos morais e a repensar suas próprias escolhas.

Dito isso, o universo feminino de Life is Strange representa emoções e dificuldades vivenciadas por mulheres reais. O medo, a culpa, a vergonha. A subordinação, a comparação, a solidão. Está tudo ali, na sua tela, mas também ao seu redor.

Só nos resta torcer para que a sensível abordagem de Life is Strange sirva de exemplo para que demais jogos sejam igualmente inclusivos a partir de agora e que não só a presença feminina na indústria do videogames se intensifique, como também a discussão de seus recorrentes dilemas.

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