É um poeta, dá uma chance pra ele.

A encruzilhada, de Kossi Efoui (Temporal, 2023)

Lenio Carneiro Jr.
Abapanema
3 min readDec 8, 2023

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Poeta: Eu nasci na ordem. Mas, quando foi preciso me dobrar em dois para entrar nela, eu entendi. Falta alguma coisa a esta ordem. O que falta é a contraordem.

Prazer, sou o poeta. Estou preso aqui neste texto, onde sempre venho parar antes de subir ao palco, de onde nunca saio. O milico me deu seis chances. Seis.

Nasci para viajar, para viver a esmo. Me tiram sempre a possibilidade de me perder, então acabo aqui, nesta encruzilhada. Ergo a voz para falar e me acusam de nunca dar boas notícias. Só sei trabalhar com o inesperado. Com a deturpação. Essa coisa de ordem —

(O Cana empurra o Poeta)

Eu não sou o primeiro artista que se anuncia. A diferença é que faço uso das palavras. Antes de mim, havia Rachel, uma dançarina, que morreu quando lhe arrancaram as pernas. Os artistas morrem sempre que suas ferramentas de trabalho são roubadas, e Rachel não sabe dançar sem um corpo. Não há sobrevida para um artista. É. Também havia um pintor. Antes de morrer, éramos amigos. Talvez ainda sejamos, em algum outro lugar. Mas dizer que o pintor simplesmente morreu por falta de pincéis é mentira. O pintor foi torturado e revirado por dentro —

(O Cana dá um soco no estômago do Poeta)

Seja pela minha insistência, seja pelo meu discurso, não sou bem vindo na república. Platão queria algo próximo da verdade e, nesse regime, a verdade é muito próxima da ordem. A verdade não dá margem para dúvidas. E eu trabalho com perguntas —

(O Cana dá um tapa na boca do Poeta)

Isso é só um texto. Ainda vão me encenar. Ainda vão dizer minhas palavras. Ainda vão esquecer o diálogo e precisar de ajuda. Quando a ordem é maior que a autonomia, quem dança livre como Rachel dançava sempre estará fadado à morte. E nós, que viajamos por aí com instrumentos de liberdade mais discretos, seremos descobertos como agentes da confusão. Por isso preciso de um palco. O texto não me basta. Preciso ser encenado. Esse milico não vê minhas tranças como uniforme porque não enxerga suas botas e seu cassetete como figurino —

(O Cana derruba o Poeta no chão)

Você insiste que não sabe como salvar sua alma. Que ninguém nunca te disse como. Acontece que você tem rigidez demais e ouvidos de menos. Você me escuta? Ein, você me escuta? Se eu dissesse essas mesmas coisas usando as palavras de um delegado, você me escutaria? Eu vou te enquadrar. Vou te pegar pelo pescoço. Vou te fazer uma pergunta. E vou parar por aí. Mas você não sabe não responder. Não sabe ponderar. Prefere levar um soco que suspender tua razão. Você sente que precisa dar respostas objetivas em prol de alguma ordem maior. Se você se permitisse a dúvida, talvez não estaríamos nós todos presos nessa encruzilhada —

(O Cana chuta a lateral do corpo do Poeta)

Chega. Eu disse chega! Eu sou a memória, o dramaturgo. Eu te coloquei aqui.

(O Cana pisa a cara do Ponto mesmo assim)

Mulher: (Segurando o Cana) Ele está completamente destruído por dentro. Dá uma chance pra ele se remendar.

“Não”, insiste o Cana.

Abapanema lê e apresenta um livro do acervo do Paradeiro (Livraria, café e cozinha afetiva | CLN 309 Bloco D, Brasília)

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