Jorge Ben é um caso seríssimo, cara. Seríssimo.

Balanço Afiado, de Allan da Rosa e Deivison Faustino (Fósforo e Perspectiva, 2023)

Lenio Carneiro Jr.
Abapanema
6 min readNov 16, 2023

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Em algum domingo desses passados, eu pedalava ao lado de dois amigos, Pedro M. e Rômulo. Nenhum de nós três levou fone de ouvido. Sem muito compromisso com o exercício físico, brincávamos de bicicleta pelo Eixão enquanto eu tentava deixar para trás um bom final de semana — esse tipo de esquecimento que a rotina pede.

Rômulo aproximou sua bicicleta da minha e perguntou: qual tua música de andar de bicicleta sozinho? Entre tanta música digna de pódio, decidi não titubear diante da pergunta desonesta. Sem conseguir nem querer pensar muito, puxei o guidão pro lado, pedalei comigo mesmo por uns segundos e cantarolei a primeira canção que veio na cabeça. Desafinei um “mag– magnólia, eu disse magnólia, eu disse magnólia, mag” e voltei para o lado de Rômulo com minha resposta.

Estética se tornou meu assunto.

Suspeito que sempre tenha sido, mas agora que passo horas consideráveis da semana lendo, estudando e debatendo a respeito, vou me apropriando do linguajar acadêmico para reafirmar esse lugar de contestar dualismos. Mas é também longe das cortinas da ciência institucionalizada que as coisas são melhores articuladas. Em algum momento do Balanço afiado: estética e política em Jorge Ben, conversa-se que a oposição entre razão e sensibilidade é uma lenda que nosso imortal Jorge Ben sabe bem desfazer com sua arte.

“Como um santo, Jorge, Ogum tecnológico da diáspora musical africana contemporânea, encruza tempos, espaços e saberes em sabores rituais míticos de transmutação sonora.”

Em uma parceria orgulhosamente desnorteada por tudo o que Jorge Ben coloca no mundo, Da Rosa e Nkosi introduzem esse livro endereçando um zap para a entidade das mensagens. O que se segue depois disso é uma mesa; uma roda de capoeira angola, de samba e investigação em torno da letra e do som de Jorge Ben.

Lenio: O que você acha que faz o Jorge Ben ser o Jorge Ben?

Natalia: Esoterismo. Sensualidade. Jeito com as palavras. Dicção peculiar.

Ibarra: Ser gênio num caráter misterioso.

Gab: Ele parece tornar as coisas mais leves e ao mesmo tempo enxerga profundidade em tudo.

Morgana: É que ele é muito inteligente e sabido e criativo. Soube juntar coisas que estavam ali, mas mais que isso, criar algo a partir de fora e dele mesmo.

Nathalia: Ser flamenguista. Acho que religião, esoterismos, raízes. E sofrer por mulher bonita.

Pedro H.: Mulher. Mulher e flamengo.

“Gosto mais do som do Ben do que do Jor. Acho que tem uma estética ali, um suingue físico e espiritual, que brinca com a nossa biologia, ofertando sustança e temperando algumas lógicas sonoras. E sinto que nele a música, por mais gozosa que seja, também é oração. O elo que junta e divide os atos de tocar e dançar é uma membrana fininha como uma pétala que floresce entre nossas entranhas, ossos e nervos. E o som de Jorge Ben ativa nossa dança própria. Ele gira no sangue e na cabeça mesmo quando escutamos deitados, apertados num vagão de trem ou com o umbigo colado na pia lavando louça. E até em suas músicas mais alegres, gloriosas ou extasiantes, no sublime que ele orquestra e derrama, nós podemos nos pegar comovidos escutando suas firulas com uma feição meditativa…”

Leio muita coisa que não interessa aos meus amigos e amores, mas isso aqui é diferente. Podem confiar. Quem tá comigo, tá ouvindo Jorge Ben. E quem tá melhor ouvindo Jorge Ben com uma sensibilidade estética apuradíssima são Da Rosa, Knosi e seus convidados-mestres-colaboradores, devidamente nomeados e vocalizados nas páginas do livro.

Transformando o que entendemos por “hermético”, a linguagem e o vocabulário do Balanço afiado se apropria do fervo sereno pelas ondas ecoadas na voz e violão de Jorge Ben. Esse é um livro pra quem se interessa pela Estética enquanto espaço de investigação científica. Mas é, antes disso, um livro para quem passou pelo susto de ouvir Tábua de Esmeralda com atenção e depois ficar incrédulo, chapando na Capadócia, se perguntando como alguém consegue fazer todo o universo caber em um gingado tão, tão especial.

Quando penso em literatura, penso em música. Quando me sento para escrever alguma coisa, na tentativa de perfurar a linguagem para fazer supitar alguma Coisa com C maiúsculo, sou atormentado por não ter saber tocar violão. Literatura é frase e verso, mas também pode ser ritmo. Isso inclui livros de não-ficção que tentam criar, nas margens internas de sua pequena tese, um ritmo próprio e de léxico jorgebeniano. Mas até hoje só li um livro assim. E que título pertinente, Balanço afiado.

O livro é uma conversa. Conversa de gente que leva arte, cultura e política muito a sério. Conversas que acontecem no pipoco carioca do dia 23 de abril, dia de Ogum. Na areia da orla, à beira-mar. Na troca de mensagens entre Da Rosa e Knosi. Na parada de ônibus depois de um samba-rock.

O livro também é uma carta. Uma carta aos que estudam e incorporam a sapiência de matriz africana. Aos que não tem medo de mergulhar. Uma carta de amor ao que é Jorge Ben. Esse é como uma definição de tudo o que pode ser. Uma carta à liberdade criativa. Uma carta à retomada da estética como ponto de partida para estudar e apresentar a cultura brasileira.

Uma carta ao zagueiro que Jorge Ben cantou lá em 1975 e ressoa em comentários do YouTube bem assim:

Esse meu texto deveria ter um cuidado maior com a forma. Ser menos uma resenha e mais uma impressão de leitura; uma apresentação; um convite. Mas tá difícil. Jorge Ben é um caso sério e a forma como os dois pesquisadores-amigos apresentam, também. Por isso, luto contra minha vontade de transformar isso num ensaio acadêmico para reiterar um convite à leitura desse livro que é a expansão do universo estético de Jorge Ben.

Em Balanço afiado, não há um distanciamento dos pesquisadores com aquilo que chamam de uma pesquisa sistemática e enamorada. Em meio a diferentes tipos discursivos — carta, ensaio, zap, análise musical, diálogo — , o que fica é um maracatu. Um aceno para quem tá no mundo pra ser sensível. Um apito pra quem entende que a defesa é parte imprescindível pra vitória. Viva os zagueiros. E que sofrido falar de futebol na reta final do brasileirão, eu aqui apaixonado pelos dizeres de um flamenguista enquanto meu Botafogo passa vergonha, fraquejando diante do título mais importante das últimas décadas.

“Futebol, onde os piores podem vencer num vacilo ou na catimba.”

Tamo precisando de sorte. Ajuda a gente nessa, seu Hermes Trismegisto.

  • Manifestação afrodiaspórica;
  • Encaixada espaçotemporal;
  • Batida entregue ao arrebatamento;
  • Equilíbrio fino e suingado;
  • Pretuguês ladinoamefricano;
  • E por aí vai.

Admiro a literatura que mostra seu avesso. Que em vez de se esconder, se revela. O livro faz isso e eu gosto de fazer isso também. Esse texto, por exemplo, não é um texto perdido no mundo, desacoplado de como perco e ganho meu tempo de vida. É a primeira colaboração entre o Abapanema e o Paradeiro, esses dois espaços — um virtual e outro físico. A ideia é me deixar guiar pelo livro destacado e escrever livremente a partir dele, finalizando com um convite para a leitura.

Na mesma semana em que eu decidi que minha pesquisa de mestrado ia seguir por um caminho investigativo sobre escrita a partir de uma ideia de Estética Política, me é colocado à mesa esse livro, que leva essas duas palavras logo no subtítulo. Felizmente, sou uma pessoa menos cética do que eu aparento ser. Acredito nos caminhos que se misturam, nas bagunças que a literatura, a música, a política e a ciência me colocam à disposição.

Se você é da música, vai curtir a análise técnica-sensível de algumas músicas específicas do Jorge Ben. Se você é da academia, vai se divertir com a ironia e a contrapartida estético-política dos autores. Se você é dos que continuam esperando os alquimistas chegarem, tenho uma surpresa pra te contar. Mas vou deixar você descobrir sozinho, pegando emprestado os ouvidos de Allan e Deivison.

Abapanema lê e apresenta um livro do acervo do Paradeiro (Livraria, café e cozinha afetiva | CLN 309 Bloco D, Brasília)

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