Mata

Sinônimo de Mãe-Terra

Selo Abapanema
Abapanema
3 min readMay 15, 2023

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Nasci grudada ao chão. Não ando, não corro, não fujo. Sou formada por animais e riachos. Às vezes, algum rio e montanha. Eu resisto nos ermos do mundo graças às forças dos troncos das árvores que me habitam. Sou um corpo vivendo das bondades da natureza, sentindo o peso das nuvens e o vagueio do sol pelo céu. Quando um arria, outro se recolhe, em respeito e recato. Vivo com secretas forças, alimentando-me das entranhas da terra e perdendo a saliva pelas folhas. Trago na casca dos troncos, os antepassados e toda minha descendência, seres que se criaram da mesma matéria. Matas são a súmula de seres que habitaram o planeta e os que nele ainda irão habitar, estabelecendo um outro tempo dentro de si, um tempo que reúne gerações em pacífico convívio, no segredo de seivas e sumos. A mata é soberana, em intimidade com um mundo que só se faz dentro dela, tem íntimas veias e faz do solo seu sustento e cova. É na terra que encontra sua alma, é onde se renova. A terra, que é pó de homens e cinzas de plantas e de bichos, opera milagres de eternidade dentro das pequenices invisíveis do dia a dia, na vagareza dos espíritos da floresta e longe de olhos humanos.

Então, quando o jagunço, a mando do fazendeiro que acabara de grilar a terra, deitou fogo à mata, a sumaúma encravada no pé da serra começou a se aguar, mas nenhum dos seres ao redor entendeu. Nem os japiins, tampouco os anus pretos, as cotias, os jambus ou as onças que, cautelosas, patinhavam em perdidas trilhas. Fugiram alguns animais, enquanto outros tantos sucumbiam. Também a flora agonizava. Eram os esqueletos que contavam aqueles dias. Mas até que o jagunço deitasse em campa própria, era seu corpo a falar, reclamando de fome e de sede, exigindo veste e calçado. Tinha de sobreviver, ele e sua família, dizia, sorvendo um odor fétido que saía da sumaúma entristecida. Não se deu conta da umidade lagrimada da terra ao redor, que ia tingindo a clareira de um vermelho tão vivo que parecia uma veia aberta no meio das árvores que resistiam em pé. Havia seres sensíveis e os que nunca haveriam de sentir, que viviam só no ensejo de matar.

Percepção e Realidade (2008), de Antônio Gomes Penna

Sandra Godinho nasceu em 1960 em São Paulo. É graduada e mestre em Letras. Já participou de várias coletâneas e antologias de contos, sendo agraciada com alguns prêmios. É membro número 78 da AILB, Academia Internacional de Literatura Brasileira. Publicou em 2016 O poder da fé, e, em 2017, Olho a olho com a Medusa. Orelha lavada, infância roubada (2018) foi agraciado com Menção Honrosa no 60º Prêmio Literário Casa de Las Américas (2019). O verso do reverso (2019) ganhou o Prêmio Regional de Melhor Livro de Contos da Cidade de Manaus. Em 2019 publicou Terra da Promissão e, em 2020, As Três Faces da Sombra. Seu romance Tocaia do Norte (2020) venceu o Prêmio Cidade de Manaus 2020 e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2021. No mesmo ano lançou os romances Sonho negro e A morte é a promessa de algum fim, com este vencendo o Prêmio Cidade de Manaus 2021, e também o Prêmio Focus Brasil NY/AILB 2022. Seu mais recente romance é Estranha entre nós, publicado em 2022. Tem ainda dois romances finalistas do Prêmio Leya de 2021 e 2022, Memórias de uma mulher morta (inédito) e A Secura dos ossos, lançado em 2023 pela Editora Patuá.

Infinitos da Palavra. Uma proposição literária de livre associação em que artistas convidadas dissecam uma palavra em quatro atos:

  • Uma cena/passagem literária;
  • Uma playlist de músicas brasileiras;
  • Um sinônimo possível;
  • Uma indicação de livro, filme

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