Não há parto sem sangue

Relatos do Quase #8

Lenio Carneiro Jr.
Abapanema
4 min readMay 2, 2022

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A matriz do romance é o indivíduo e sua solidão, o homem que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações, a quem ninguém pode dar conselhos, e que não sabe dar conselhos a ninguém. Escrever um romance significa descrever a existência humana, levando o incomensurável ao paroxismo.

Walter Benjamin.

Abro o Spotify, o mesmo som de sempre. A cadeira em frente à tela do computador não me cabe, preciso contar respirações antes de começar. Mais relaxado, a escrita bate à porta. O pressionar dos dedos nos cubos do teclado desempenham o papel mais ingrato de todos: precisam redigir as palavras, letra por letra. O processo químico que é decantar a mistura heterogênea do raciocínio lógico, cerebral, com o sentir livre, afetivo, até chegar ao que se é escrito. Seria cômodo vomitar as palavras, colocar para fora sem pudor algum, deixar o bile existencial respingar e enojar todos os leitores, mas a urgência da escrita demanda zelo, principalmente quando as coisas estão esclarecidas. Conto as respirações outra vez. É impossível me acalmar.

i don’t know where i’ll be tomorrow
and i don’t care
no, i don’t care

Inquieto, descuido de mim para cuidar da escrita e cuidando da escrita, inevitavelmente cuido de mim. Faço algumas escolhas, deixo a maioria das escolhas me fazerem. Aos amigos e amores, digo sempre tanto faz. A falta de assertividade é consequência do cansaço ou de quem sou? Depende, mas garanto que a quantidade de decisões que tomo no meu processo criativo é exaustiva, daí a necessidade de uma rotina complementar que suavize os queros e não queros. Sim, a vida que vivo é apenas complemento do que escrevo. Aceitar isso é me aceitar, quando digo tanto faz quero dizer obrigado pelo acolhimento, amigos e amores, são vocês o meu diafragma.

the sun may rise on that morning
maybe blue sky
maybe grey sky

Escrever um romance é um projeto de fôlego. Uma maratona sem trajeto ou obstáculos definidos. Por isso é mais importante saber respirar do que propriamente conhecer a rota. Respeitar o tempo até que ele se dilua em frases, parágrafos, capítulos, arcos narrativos, história. Fazem alguns meses desde que comecei a puxar o ar apenas para expirar ficção, alguém está contando? A provocação de que toda memória é ficcional faz sentido, força motriz para que eu continue fingindo inventar o que na verdade já é real, tão real quanto enfiar a cabeça embaixo d’água e desesperar-se por oxigênio, a eloquência primal de não se deixar asfixiar ao mesmo tempo em que sofre a atração do mergulho, os corais coloridos chamam e chamam, a beleza do recife pinta a raridade e a profundidade do que só se alcança brincando de se afogar.

some things we aren’t able change them
another storm will come to pass
until the next time of the best

Repito aqui o exercício explicativo que fiz no primeiro relatos do quase: sim, estou escrevendo. Estou me formando em um curso que me desensinou muita coisa, principalmente sobre a desilusão da grandeza. Se não fosse o mimo e a ambição ima e prematura de um menino novo demais para saber que seu espaço no mundo está no que é pequeno, eu teria conciliado o meu desenrolar universitário com a possibilidade estética da minha existência. Não o fiz e hoje agradeço. É preciso ter expectativas, quebrá-las e então encontrar o escondido no anseio do desejo. Justamente por não ter cursado letras, posso reformular minhas expectativas, dessa vez a escrita prioridade-certeza antes de tudo, todos, tudo e todos. A escrita condicionada à priorização do amor. Amar, o guidão; escrever, os pedais. Bicicleta-vida, pedalar é por definição um esforço físico e vivo pelos momentos de descida em que as rodas fazem sozinhas o que foram criadas para fazer, me importa apenas o vento no rosto, bagunçando os cabelos, a naturalidade de estar veloz, vontade de fechar os olhos, se Deus existe é esse o seu sopro. Respiro.

i don’t know where i’ll be tomorrow
and i feel free
just to be me

Cansei de precisar preparar terreno para falar sobre escrever. Cansei de precisar preparar terreno para falar sobre mim. O início vicioso do que digo é sempre “sei que parece loucura,” ou “é difícil explicar,”. Sim, é coisa de lelé da cuca. Sim, é complicado. Mas não conheço outra forma de ser. A forma na literatura é refinamento — estética. O ser na literatura precisa de manutenção — divisão esquizofrênica. Pela minha forma de ser, peço desculpas. Pela forma que foi, também. O perdão que busco, a superação de uma culpa invisível que corrói, apenas morrendo para ter acesso. Não tenho medo de morrer, menti esses dias. O verdadeiro seria dizer que já morri, hoje opero com o que não me restou de mim.

forgive the one who has wronged you
he’s a brother
she’s a sister

Abraço o quase, me defino por desinteiro. A consumação da história que formulo aos poucos encapsulando tanta força que logo a explosão será inevitável. Assim que o documento em branco passar a ser instrumento de narração, não tem mais volta. Cheguei até aqui, vou até o fim com os dilemas que me obrigam a escrever esse livro. Não um livro por inteiro, a literatura existe para discordar da vida e um romance terminado não significa uma história completa, apenas acabada. Erro na vida, erro na escrita. Antecipo o final: um livro completamente incompleto, materialmente virtual. Antecipo o meu final:

i give my life to this moment
another storm will come to pass
until the next time of the best

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