Pele

Sinônimo de Angústia

Selo Abapanema
Abapanema
3 min readJul 25, 2023

--

Olho a pele de minha mãe e me pergunto quantos anos será que ela sente que tem, que unidade de tempo usa em sua passagem, como conta quem ainda crê que é. Ontem mesmo fui assistir ao filho dos outros em apresentação escolar e as lágrimas me escorriam vergonhosamente porque eu não poderia jamais dizer que emocionava-me por mim mesma, pela pele de minha mãe. Chorava desconsoladamente por ser filha, porque já fui mais filha, e porque tropeçava sem saber da morte. Contava quantas amarelinhas faltavam até a praia e a pele, viçosa que só, desconhecia certa coisa da solidão de ser menos filha quando uma mãe envelhece. Esse é um saber coisa do tempo do espanto, que passa silenciosa e indizivelmente por esta menina. Sabe-se do corpo sempre mui depois muito embora ele se imponha sempre antes. Quando notei que minha mãe envelhecia foi quando enxerguei que os braços de meu pai ganhavam securas que foi quando notei que o tempo denunciara o passar e o passado de mim própria. Não foi portanto sem a existência de seus tecidos. Eu conto quem sou a partir de quem deixaram de ser e, como num destino, eu continuo a repetir. Lembro agora que minha mãe conta que já quis fugir com o circo. Em todo circo eu choro. Porque me lembro de que ela quis. Querer me emociona e me dói precisar morrer, ver acostumar a deixar de querer coisas de viver, que se quis. Um chão em que sempre se pisa esse da infância, estranheza sem solução envelhecer distraída, dar-se conta de súbito num dia único o que aquelas crianças do palco me infamiliarizavam. Tinha na platéia uma mulher que constante me interrompia o susto, como a barreira de uma represa, desavisada de que a emoção é o direito ao silêncio. Só senti emoção por não ser capaz ali de sentir raiva ou incômodo. Senti o corpo tomado de arrebatamento mudo por saber que somos incapazes de envelhecer. Meu pai conta histórias fantásticas que me fazem duvidar de sua veracidade, mas de sua verdade, nunca. Não me importo com a ficção, é o direito ao silêncio. Meu pai não tem número mesmo que dele se lembre sem parar. Minha mãe, que vive se esquecendo do seu, transmite cada vez mais, por falar cada vez menos, o tempo que passou. Meu pai chama sua falecida mãe de mamãe, um tempo que fica, esse da pele.

tudo o que leva consigo um nome, de francisco malmann

A escritora vem antes da psicanalista. A Paraíba, também, vim de lá. Chamo-me Sarah Guerra mas por muito tempo só aceitei o Soares. Meus 30 anos não sabem que não têm 12. Sou absolutamente viva.

Infinitos da Palavra. Uma proposição literária de livre associação em que artistas convidadas dissecam uma palavra em quatro atos:

  • Uma cena/passagem literária;
  • Uma playlist de músicas brasileiras;
  • Um sinônimo possível;
  • Uma indicação de livro, filme ou o que for.

--

--