Superfície

Sinônimo de Pele

Selo Abapanema
Abapanema
3 min readMay 6, 2023

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11h da manhã. Me levanto do banco longo de madeira que seria confortável não fosse a quantidade de horas que já passei aqui. Nessa estação de trem tudo parece tranquilo e apesar do ambiente vazio me sinto segura o suficiente para dar uns cochilos.

Estico os dedos das mãos e dos pés só pelo hábito. O dia é claro, silencioso e já faz quase 24h que não me vejo no espelho.

Sinto meu cabelo nos ombros e a sensação de calor me causa um leve incômodo, o suficiente para decidir prende-lo. Sem um espelho, uso as mãos para sentir cada tufo de fios e tento encaixá-los de um jeito que pareça razoável. A brisa leve na nuca que sinto em seguida confirma a excelente decisão.

Nesse clima tedioso e buscando qualquer sentimento que se apresenta, olho para frente e encaro o horizonte: é um campo largo com algumas flores e vegetação baixa, já um bem ressecados e demonstrando o meio do outono. Ao fundo, as montanhas decoram a paisagem simples com a imponência histórica e geológica de milhões de anos. Tamanha sabedoria, vivência e complacência. Retorno o olhar para onde deveria chegar o trem na próxima meia-hora.

Como não há o que prever, procuro imagens em minha memória que combinem a ideia de que é sim possível cuidar fielmente de si e ao mesmo tempo se apaixonar por alguém. Me pergunto como é sensação de vivenciar as duas coisas sem se perder nas camadas e camadas de interação. Escrevo essa indagação num papel que havia guardado em meu bolso. É mesmo possível?

Penso em como a paixão é uma superfície sinuosa. Um campo sobreposto de desejos maleáveis, delirantes, fluidos, eletrizantes, móbiles e imprevisíveis. Respiro fundo. Sempre tenho mais perguntas do que respostas.

De repente, ouço o som de um passarinho e logo em seguida o som do trem que finalmente chegava. Seguro com força o papel da pergunta, como se aquilo fosse minha carteira de identidade. Tenho uma certa impaciência em relação a esse assunto. O vento da chegada do trem bagunça meus cabelos e tento ajeitar prendendo um dos tufos soltos atrás da orelha. Me lembro da vez em que tirei o seu cabelo do meu rosto e percorri sua pele. Seguro o papel com mais força na tentativa de voltar a realidade e desvio o pensamento conferindo a mochila, dobrando o casaco e guardando a pergunta no bolso da calça.

Talvez a resposta esteja numa outra estação.

Percepção e Realidade (2008), de Antônio Gomes Penna

Taís Cardoso, 25 anos, é cantautora e multiartista brasileira. Nascida na capital do Rio de Janeiro, iniciou a sua vida artística em Brasília em 2016. Sua arte retrata detalhes e metáforas sobre a vida, o amor e o adultecer. Em abril de 2023 lançou “dezembro a janeiro: reminiscências”, livro de poesias autopublicado. Seu trabalho musical mais recente é o EP Audiovisual “O Começo” lançado em 2022 e disponível nas plataformas digitais. Anteriormente, atuou como cantora e compositora na banda Aguaceiro, participando dos EP’s “Tudo Que Podia” e “Augusta”. Atualmente faz parte do Portal Fazia poesia onde publica seus textos periodicamente.

Infinitos da Palavra. Uma proposição literária de livre associação em que artistas convidadas dissecam uma palavra em quatro atos:

  • Uma cena/passagem literária;
  • Uma playlist de músicas brasileiras;
  • Um sinônimo possível;
  • Uma indicação de livro, filme

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