Suspiro

Sinônimo de Sentença

Selo Abapanema
Abapanema
2 min readJan 23, 2024

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O atelier fica no quinto andar, no fim do corredor, entre uma clínica de optometria e um escritório de contabilidade. Muito escuro e quente, com um cheiro forte de cigarro. Corredores estreitos de meninos de aço dispostos em poses variadas, alguns lendo livros, outros gibis, um coberto com um lençol branco furado nos olhos e boca como Gasparzinho, outro com as mãos atadas atrás de si, pés cruzados, como a bailarina de catorze de Degas; três soldadinhos de mãos dadas, cada um com uma parte do corpo — crânio, joelho esquerdo, genital — mutilada. Entre os garotos, uma estátua ou outra de animal: três pombos mortos, amassados em faixa de pedestre; um cervo, em bata de hospital, policefálico; um cordeirinho-anjo arrancando com dentes, até espirrar sangue, um pedacinho de uma das asas. Passo muito tempo andando, encarando meu reflexo disforme em cada escultura como num labirinto de espelhos de parque de diversões, comparando uma imagem à outra e me resignando à conclusão final, absoluta de que nunca serei tão belo, tão perfeito quanto nenhuma — até as mais horripilantes e deformadas. Talvez por ser de verdade.

Se alguma dessas estátuas ao meu redor pudesse falar, sussurrar, advertir, o que será que me diria? Enquanto espero O Artista chegar, imagino. Escolho minhas favoritas, solto um assobio, então um sopro de vida, como Afrodite com Galateia, e, uma por uma, começam a declamar. Gasparzinho levantando os braços, apontando para a porta, com voz rouca de fumante, nada como a do desenho animado: Fuja enquanto pode, menino perdido, sua vadiagem foi longe demais… Nunca viu aquele filme, Casa de Cera? Nas profundezas da arte, tem carne real! E outro, nu exceto por botas altas, laço de fita no pescoço e chapéu de Napoleão, interrompendo do canto: Que Casa de Cera, isso aqui é Dorian Gray, só que ao contrário. Ele prende a beleza na obra, e aí, do lado de fora, pouco a pouco, você se despedaça… O pequeno bailarino não consegue formular uma frase, só chora, e o cervo entoa, com a cabeça direita, a melodia de um Noturno de Chopin, enquanto a esquerda esganiça os acordes. Todos se calam e a música para, abruptamente, quando o celular vibra em meu colo, no mesmo instante em que se ouve o primeiro toque da campainha. Não movo um dedo, nem sinto nada; só fecho os olhos, suspiro, e me preparo para o abate.

paisagens insulínicas, gabriella rendeiro

Pedro Minet nasceu e reside atualmente no Rio de Janeiro, capital. Seu primeiro livro, “Coleção de meninos mortos”, foi publicado em 2023pela Editora Urutau.

Infinitos da Palavra. Uma proposição literária de livre associação em que artistas convidadas dissecam uma palavra em quatro atos:

  • Uma cena/passagem literária;
  • Uma playlist de músicas brasileiras;
  • Um sinônimo possível;
  • Uma indicação de livro, filme ou o que for.

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