A Arte, a Música e as Fissuras do Real

Daniel Vieira de Carvalho

A Beleza do Som
A Beleza do Som
8 min readMay 22, 2022

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Você consegue ver que tipo de ações são possíveis para superar a opressão da realidade em que estamos mergulhados? Não se trata apenas de ações políticas, já que é uma área em completo esvaziamento, visto que a política é só uma zona de atuação de grandes oligarcas, empresários empenhados na destruição dos direitos dos trabalhadores; da elite sem cultura do agronegócio; das grandes paróquias de cada Estado e assim por diante. Um mundo onde não há espaço para nenhum tipo de ação realmente humana, nada que possa, de fato, emancipar o sujeito e a sociedade como um todo. Um mundo desenhado industrialmente, que funciona pela loucura da expansão infinita na economia e onde os sujeitos estão quase completamente lobotomizados.

Superar essa realidade, precisamos reforçar isso, exige superar o problema principal, caso contrário nunca sairemos do lugar, É a raiz ou a matriz que coloca o mundo em várias formas pré-determinadas, a própria sociedade das mercadorias precisa ser destruída, o que a muitos parece algo impossível. Quantas vezes não lemos notícias sobre a preocupação dos “masters of universe”, os ricos de verdade que acreditam controlar a monstruosidade que é a acumulação de valor, pedindo que se reformule o Capital, que o tornemos mais humano? Para quê? Para continuar explorando os direitos e garantias dos sujeitos e permitir que se continue produzindo valor, o valor abstrato, as quantias incontáveis de dinheiro fictício com uma maquiagem, sendo sustentável?

Uma piada!

Sejamos um pouco mais realistas.

Podemos afirmar com certa segurança que ações de defesa à natureza, aos direitos humanos, meio ambiente, desenvolvimento social e tantas outras causas importantíssimas não passam de ações paliativas.

Então sempre ouvimos alguém, principalmente na área das ciências humanas, dizendo que a arte poderia servir, ajudar ou colaborar para mudar a realidade, ou causar transformações no tecido social, criando oportunidades de formular novas realidades. Todas as transformações nesse âmbito da cultura acabam sendo tragadas rapidamente pelo mercado, são assimiladas e depois sucateadas. Nossos conservatórios de música que o digam! Nossos museus, nossos teatros, nossas universidades… Você conhece bem essa realidade, me refiro ao Brasil. Ainda assim, você pode conferir a cada dia a infinidade de convulsões sociais devastando o Real. Ou como diria Hegel, parafraseado no filme Matrix, o Deserto do Real.

Imagem de Markus Spiske (@markusspiske)

“Em primeiro lugar, as relações de classe vigentes nesse sistema de produção e de consumo são de um tipo peculiar. Sobressai aqui antes o puro poder do dinheiro como meio de domínio do que o controle direto dos meios de produção e do trabalho assalariado no sentido clássico. Um efeito colateral tem sido reavivar o interesse teórico pela natureza do poder do dinheiro (em oposição ao de classe) e pelas assimetrias passíveis de daí advirem (…) As estrelas da mídia, por exemplo, podem receber altos salários, mas ser espantosamente exploradas pelos seus agentes, gravadoras, magnatas da mídia etc. Tal sistema de relações monetárias assimétricas vincula-se à necessidade de mobilizar a criatividade cultural e a inventividade estética não somente na produção de um artefato cultural, mas também em sua promoção, embalagem e transformação em algum tipo de espetáculo de sucesso.” (HARVEY, 2012, p. 312)

A grande questão é: Como a arte pode colaborar na transformação radical desse problema? Essa questão paira como um fantasma de bengala, sobre dois pontos fundamentais:

  1. A transformação radical coletiva;
  2. A transformação parcial do sujeito;

O primeiro ponto, como se pode deduzir, só pode ocorrer a partir do colapso total de um mundo para que outro seja construído no lugar — o que é bem imprevisível e assustador, e que com muita certeza, seria seguido de barbárie e caos antes que alguma coisa sólida tomasse o lugar das ruínas –, o segundo ponto, contudo, parece ser o nosso norte. O sujeito pode, através da arte, tomar consciência do mundo em frangalhos e despertar uma fagulha de emancipação dentro de si mesmo quando consegue acessar conteúdos do espírito e da liberdade — o que não garante absolutamente nada, mas ao menos é uma esperança discreta e permite se localizar no meio do furacão, evitando pelo menos danos colaterais piores.

Precisamos da arte mais do que nunca, e principalmente da música instrumental, aquela que não contém aspectos da linguagem verbal, posto que a linguagem verbal não dá conta de expressar o Devir, a mudança sempre contínua que a vida é, e que, por outro lado, só pode ser compreendida por meio de uma ciência que Hegel chama de Ciência Estética. A ciência estética se fundamenta na ciência já conhecida, mas vai além dela, pois é a única capaz de compreender a verdade estética que se origina no Espírito Absoluto. Isso significa que a Estética, para Hegel, procura compreender o conteúdo “espírito” e “ideia” que existe unicamente na Arte. O artista, assim, recebe influxos da verdade do espírito absoluto na finitude da consciência, manifestando uma parte desse Espírito Absoluto.

Hegel considera que: “(…) O que tem de servir de base não é o particular, não são as particularidades, não são os objetos, fenômenos etc., particulares: é a ideia. Pela ideia, pelo universal, se deve começar em tudo, e, por conseguinte também no nosso domínio.” (HEGEL, 1999, p. 34)

Isso significa que a ideia não é meramente um produto humano, que surge por causa do humano, ao contrário, ela vem desde a intuição que temos algo que não é apenas um conglomerado de ideias, mas um protótipo da manifestação do Espírito Absoluto dentro da dimensão do Devir Histórico, do processo sempre atual e presente de captar este espírito; a ideia é UNA, ela é aquele elemento que dá coesão a toda estrutura do Real, da Vida, do nosso mundo em constante transformação. Por meio da arte, escapamos das regras rígidas do pensamento e conseguimos nos manter completos, não-fragmentados, lapidando nosso espírito finito para a compreensão da Unidade.

Há um instinto do Belo no ser humano, e este instinto só existe, porque podemos, às margens da ciência castrante, alcançar voos mais altos. O artista só cria um artefato artístico, nesse sentido, por causa de uma intuição estética, não somente por um processo racional, a faculdade da razão é um efeito do instinto humano que quer conhecer, não o contrário. Vale lembrar que a palavra “espírito” não tem conotação religiosa, trata-se do espírito puro, daquilo que permite a manifestação de todas as coisas e que está presente no ser humano em forma de intuição, o Espírito, para Hegel, é imanente, está intrinsecamente ligado aos fluxos da natureza, é a própria História.

“A arte teria como campo de ação a esfera dos sentimentos e das intuições dependentes, por outro lado, da imaginação, e dirigir-se-ia assim a um domínio do espírito muito diferente do da filosofia para despertar uma ordem de pensamentos muito diferentes do pensamento filosófico. Professa-se a opinião de que a vida em geral e tudo o que nela participa, compreendida a arte, não são apreensíveis pelo pensamento. Parece que é justamente pela arte que se escapa ao conceito, porque, conforme se pensa, o objeto dela é incompatível com o pensamento, com o conceito, e destruir-se-á o que uma obra tem de especificamente artístico, sempre que se queira introduzir nela um pensamento” (HEGEL, 1999, p. 37)

Você consegue compreender a dimensão disto? É o mesmo que dizer que se consideramos a arte por meio do pensamento, e não do instinto e da intuição, chegamos sempre à destruição do que é mais importante numa obra artística, se o fazemos de forma racional e científica. A arte está, nesse sentido, muito próxima da religião e da filosofia, mas atua acima delas, é superior a ambas.

“(…) o espírito pode considerar-se a si próprio, dotado como é de uma consciência que lhe permite pensar-se a si próprio e a tudo quanto origina. Porque o pensamento constitui a mais íntima e essencial natureza do espírito. Graças a esta consciência pensante que tem de si mesmo e qualquer que seja a aparência de liberdade ou de arbitrariedade que os seus produtos possam apresentar comporta-se o espírito, se é na verdade imanente, em conformidade com a essência e a natureza próprias. Ora, originadas e engendradas pelo espírito, a arte e as obras artísticas são de natureza espiritual, até quando oferecendo a representação uma aparência sensível, esta esteja penetrada no espírito.” (HEGEL, 1999, p. 38)

A arte, portanto, se aproxima muito mais do espírito do que do pensamento. Para simplificar um pouco isso, mesmo cometendo alguns equívocos necessários, é como se “Deus” (que para Hegel é o Espírito Absoluto imanente) pudesse se olhar por meio das obras de arte.

Disto podemos retirar que os artistas são os que estão mais capacitados para permitir que tal fenômeno ocorra. Nós somos os olhos dessa consciência espiritual. Somos o olho do Universo para que ele possa contemplar a si mesmo. Isso é algo muito mais profundo que apenas considerar a arte como uma utilidade na emancipação do ser humano, é a arte que permite à humanidade se conectar com a essência que torna possível a nossa existência enquanto seres humanos.

Antigamente, a experiência do Belo era um ato de fugir aos horrores deste mundo, no qual a arte teria o papel de nos levar a uma catarse retirando-nos do mundo real para nos levar ao mundo do espírito e, ali, desfrutar do Real. Agora precisamos fazer o movimento inverso. A experiência exigida agora, para libertação do indivíduo da opressão dessa “realidade”, é uma fuga para baixo, ou seja, precisamos fugir da ilusão e retornar para o mundo real.
Tal experiência é semelhante a estar viciado em substâncias químicas por décadas e se abster da ilusão de felicidade que as substâncias podem oferecer. Isso causa incômodo e desconforto.

Afinal de contas, essa “realidade” nos viciou em prazeres instantâneos, nos domesticou em hábitos anti-humanos e contrários ao fluxo da physis. Voltar nossas vidas ao mundo real não é uma tarefa tão simples.

Podemos concluir, assim, que o papel da Arte e da Estética na superação da realidade opressiva que nos impuseram consiste em abrir fendas no tempo/espaço, rupturas na nossa consciência comum que permitam ao sujeito ver exatamente, por meio da contemplação do Belo, o mundo Real, não os simulacros que criamos artificialmente. A arte tem a função de abrir esta fenda e nos permitir tocar o Eterno. O Eterno que não se revela fora do fluxo contínuo do presente, no passado ou no futuro, mas no exato momento em que se contempla ou se cria uma obra de arte.

É uma tarefa árdua, já que nos acostumamos a apreciar a arte em sua reprodução frenética, nos aplicativos de música, nas gravações e no consumo virtual da arte.

Essa fuga para baixo só ocorre ao vivo na execução exata da arte. Daí que a música seja a mais indicada, considerada por grande parte dos filósofos como a arte mais espiritual, pois o som em si ocorre no tempo/espaço como fenômeno sonoro e material e ao atingir nossos ouvidos, quando suas vibrações ondulares tocam nosso corpo, se transforma em informações objetivas para, logo em seguida, se tornar abstração subjetiva e, por fim, permitir o olhar dentro do espírito. É a dialética do espírito, em outras palavras: “Deus” se contempla em nossas produções artísticas e nós contemplamos “Deus” por meio da criação da arte e de sua contemplação. A arte manifestada no plano físico é o portal para onde dirigimos o coração. Isso exige um pouco mais de silêncio, mas sobre o silêncio falaremos outra hora.

Olhar dentro do espírito, no contexto que estamos apresentando, é a única forma de emancipação do sujeito, pois ele se libera da ação do pensamento, da razão e da ciência plana, acessando um estado de consciência que o transcende e que o retira do vício da vida comum e estéril.

Referência Bibliográfica:

Coleção Os Pensadores: Hegel. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. São Paulo: Edições Loyola, 2012

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