A Harmonia dos Contrários

Daniel Vieira de Carvalho

A Beleza do Som
A Beleza do Som
4 min readJul 17, 2022

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Se você adentrar a história da filosofia ocidental vai perceber que os primeiros principais problemas filosóficos estão atrelados a conceitos muito específicos: Todo vs. Particular, Liberdade vs. Igualdade, Physis vs. Logos e por aí segue uma lista imensa. Seguindo esses caminhos, podemos encontrar a origem do pensamento de incontáveis filósofos ao longo da história, antigos ou recentes, pois a Filosofia tem sua origem nesses problemas iniciais.

No primeiro caso, “Todo vs. Particular” encontramos a origem da problematização da epistemologia, por exemplo: “Como é possível que um homem ou mulher, que são particulares, consigam apreender o conhecimento do Todo?”, ou ainda: “É possível a apreensão do Todo pela Parte?”.

No caso de “Liberdade vs. Igualdade”, encontramos a problematização ética entre o indivíduo que tem desejos particulares e a sociedade como um todo, que depende de uma ação coletiva em favor do bem comum, desta forma encontramos: “Em que medida há garantia de liberdade para que o sujeito aja conforme seus desejos particulares?”

Sem dúvida alguma, no entanto, o par de opostos mais interessante diz respeito ao terceiro caso: “Physis e Logos”.

A gente poderia muito bem colocar este grande problema filosófico como “Natureza e Linguagem”, mas o problema estaria longe de ser resolvido, já que Physis pode ser compreendido não apenas enquanto “Natureza”. A Physis é um campo aberto de estudo filosófico que só depois de Aristóteles ganhou um significado mais fechado, sendo utilizado, mais tarde, para nomear o saber que estuda a física.

No entanto, Physis é um termo que se confunde para os primeiros filósofos com o próprio Ser, neste caso há uma dimensão ontológica e metafísica em Physis. Diz respeito ao movimento do próprio Ser, enquanto Devir, não enquanto algo dado e final, mas sempre dinâmico e pulsante.

Já o termo Logos, depois de tanto uso indevido, acabou se transformando em algo muito escasso, não apenas linguagem, mas principalmente as normas e o estudo de uma disciplina. No entanto, Logos é um outro conceito que também tem origens mais profundas, está muito além do que expressar apenas algum tipo de racionalidade ou raciocínio, muito além do que apenas uma forma sistemática para analisar uma matéria.

Para Heráclito, filósofo pré-socrático, todo evento na ordem da natureza comunica alguma coisa, diz alguma coisa. O ser humano é apenas um dentre os inúmeros modos que a Physis pode ser compreendida. Não se delimita apenas ao verbo ou expressão verbal. Possui uma dimensão estética que é calcada no corpo, ou seja, na percepção do que é comunicado, não apenas na forma. Apreender ou conhecer é primeiramente uma função sensível, que se dá por meio do tato, olfato, audição, visão, etc., e que só se transforma em conhecimento inteligível depois por intermédio das outras faculdades do conhecimento, o que implica necessariamente que o corpo tem primazia na epistemologia antiga.

Alguma linguagem só pode ser compreendida se houver nela uma lógica compreensível, que não entre em contradição consigo mesma. Então, nesse contexto, a Physis se manifesta como Devir e o Logos como lógica do devir e do kosmos que se apresenta aos nossos sentidos e às faculdades do conhecimento como harmonia dos contrários.

Com o tempo as tensões da vida nos levaram a concluir que os contrários são excludentes, o que nos levou a equívocos imensos, dualismos e maniqueísmos de todo tipo. Quando, na verdade, o Devir é composição, nunca oposição. A luz e as trevas não estão lutando entre si, pois se complementam no jogo da linguagem do Logos e da Physis. As polaridades não se aniquilam, aniquilar um ou outro polo é o mesmo que não existir. Daí que, para Heráclito, seja tão importante a noção de harmonia dos contrários, pois não há a compreensão da luz sem a presença da compreensão das trevas e vice-versa. “Eles não compreendem como uma coisa concorda discordando consigo mesma; é uma afinação voltando-se em si mesma, como a do arco e da lira” (KAHN, p. 89, 2009)

Muito dos dualismos que nós cultivamos em nosso pensamento hoje diz respeito a este ponto chave: nós preferimos um mundo não dividido, nós preferimos o que não é diferente, nós preferimos o que não gera dissonância, porque é mais fácil (pelo menos assim acreditamos) lidar com um mundo que tem uma cor só do que lidar com um mundo em constante movimento, cujo movimento é desvelado continuamente por meio da harmonia dos contrários.

Foto de Alice Yamamura (@aakemiy)

Não precisamos ir muito longe para entender isso. A maioria das pessoas não quer sentar e ouvir uma música que fuja daqueles acordes que são mais comuns e consonantes, porque a riqueza do múltiplo assusta, espanta. O espanto, por sua vez, ou phatos, é o primeiro passo para desenvolver o pensamento, a filosofia nasce do espanto. Isso significa que, escolhendo músicas ou fenômenos que estão restritos a apenas um tipo de entendimento, nós acabamos com todas as possibilidades de um conhecimento mais profundo e amplo. Acreditamos que aniquilar o polo oposto resultará em harmonia, porque fomos adestrados a entender a Harmonia como um lugar onde não existe tensão. Isso é um absurdo! A Harmonia, que é a lógica ou linguagem por meio da qual a vida acontece, é um fenômeno imanente a todas as coisas na Physis, a tudo o que se desvela no Devir.

Referência Bibliográfica:

KAHN, Charles H. A Arte e o Pensamento de Heráclito: Uma edição dos fragmentos com tradução e comentário. São Paulo: Paulus, 2009

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