A música como ferramenta discursiva de dominação

Alessandro Oliveira

A Beleza do Som
A Beleza do Som
8 min readFeb 13, 2022

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As relações discursivas e as disputas em torno delas são elementos que moldam as nossas ideologias e nossa forma de ver o mundo. Considerando, portanto, a música como um discurso histórico e linguisticamente estabelecido, torna-se evidente o seu papel na construção das forças motrizes de nossas ações e pensamentos e, consequentemente, sua função como ferramenta de dominação.

É sempre bom iniciar um texto pela devida conceituação dos termos utilizados. Não quero que o parágrafo anterior pareça um reles gerador de lero-lero, então, coloco-me na obrigação de melhor explicar o que foi dito: compreendo como discurso não só aquela fala que uma celebridade faz ao receber um prêmio, aquele ato elocutivo que um político faz ou aquela longa palestra dada por alguns profissionais em cerimônias específicas. O discurso é, tal como afirma Dominique Maingueneau (2005, p. 16), um ato linguístico e histórico, ou seja, determinado por aquilo que pode ser dito dentro de um universo linguístico e dentro de uma conjuntura temporal específica. Tudo que podemos dizer hoje é porque nossa linguagem é capaz de abranger e nosso tempo é capaz de suprir.

Isso significa que não é possível produzir um discurso cujos recursos mínimos necessários para fazê-lo não sejam fornecidos pela temporalidade e pela linguagem. Para dar um exemplo grosseiro: um australopiteco não pode fazer um discurso científico sobre uma nave espacial; tanto porque seria historicamente impossível ele tratar do tema, quanto porque sua linguagem não oferecia os mecanismos necessários para que isso fosse tratado. É por causa desse tipo de coisa que, para as pessoas que estudam relações discursivas de forma mais aprofundada, a frase “Fulano é uma pessoa a frente de seu tempo” é tão sem sentido. Se sua temporalidade não permitir que um ato seja concretizado, ele não o será.

O discurso também não se limita à fala ou à oralidade. O que chamamos de “práticas discursivas” trata não só do que a língua é capaz de produzir, mas de todo o produto da ação humana que é capaz de produzir sentido e significado. Uma construção civil, por exemplo, é um discurso, pois, por meio desta, quer-se imputar algo. Quando se coloca pedras em locais onde pessoas em situação de rua dormiriam, cria-se um determinado discurso; quando apaga-se pichações, também vemos um discurso. Por fim, quando mantemos a estátua de um escravocrata, ainda que em nome da “preservação histórica”, também acabamos produzindo um discurso (nesse caso, um cruel, violento e, acima de tudo, fadado ao fim, se estivermos caminhando em rumo a uma sociedade melhor).

Espero ter, com esses últimos exemplos, conseguido, minimamente, mostrar o quão importante é reconhecer os seguintes aspectos: quem é o enunciador, de onde ele parte e com que ferramentas ele foi capaz de enunciar. Também prezo para que isso tenha sido suficientemente elucidativo para que sejam notadas as presenças de relações de poder nas produções discursivas, pois o detalhamento das condições de produção de um discurso é fundamental para que nós possamos observar sua posição nas disputas da sociedade.

Um outro aspecto crucial para essa apresentação é pensar no discurso como algo sempre produzido tendo em mente o outro. Quando eu digo, escrevo ou construo algo, penso sempre em como isso será interpretado, o que eu tenho a ganhar ou a perder com isso e, por fim, como outros reagirão a isso. Em alguma medida, estamos frequentemente lidando com convenções e adequações sociais para que nossos discursos se enquadrem nelas; por exemplo, a escolha da roupa, o tom de voz, a restrição do vocabulário, a etiqueta e até os aspectos de nossa linguagem corporal estão sob constante julgamento de outrem e nós, enquanto conscientes disso, estamos sempre pensando nisso antes de agir. Evidentemente, em determinadas situações, quando estamos com menos controle ou nosso julgamento por algum motivo é afetado, acabamos ultrapassando os limites estabelecidos pelas normas consuetudinariamente criadas; contudo, em situações normais, limitamos nosso comportamento com base em uma expectativa a respeito de sua recepção.

Acontece que as regras que pautam o que é ou não aceito socialmente não são externas aos sujeitos; ao contrário, existem agentes que as disputam frequentemente. Sem querer aprofundar no assunto, há pouco surgiu uma discussão na internet sobre mulheres poderem ou não andarem com os peitos descobertos em público, o que, atualmente, é mal visto por muitas pessoas. É claro que essa regra não é algo que a natureza, o universo ou um ser divino pautaram; ela foi estabelecida com base em fatores culturais e interesses de indivíduos específicos. Se uma roupa é um discurso, a ausência dela também é.

Mas vamos — finalmente — ao ponto principal do texto. Acredito já ter convencido a pessoa que me lê de que os discursos são historicamente criados, os locutores possuem interesses específicos ao realizá-los e se vinculam entre si em uma relação de dominação e poder. Agora, acredito também que não preciso mostrar que música é também uma concepção discursiva.

Historicamente, diferentes grupos sociais sempre perceberam que possuíam formas de fazer arte distintas entre si. Por exemplo, quando, durante a consolidação da República Romana, os Latinos encontraram com os Etruscos, notou-se, segundo Tito Lívio, imediatamente uma diferença de comportamento entre eles. Segundo o historiador:

Artistas profissionais convocados da Etrúria dançavam com o acompanhamento da flauta: não cantavam nem encenavam nenhuma imitação de canções; seus movimentos eram decorosos e no estilo etrusco. Então, a juventude nativa começou a imitá-los, ao mesmo tempo proferindo gestos em versos grosseiros. Seus gestos eram adequados à voz. Uma vez apreendida, a repetição melhorou a qualidade. Os profissionais nativos […] já não pronunciavam versos semelhantes aos brutos Fesceninos, mas começaram a executar medleys cheios de compassos musicais ao som da flauta e movendo-se adequadamente [Tradução de Alessandro Oliveira]

O que é colocado com ênfase é a superioridade de uma suposta comunidade nativa que não apenas soube imitar com precisão o que os estrangeiros faziam, mas também desenvolveu uma forma única que combinava os elementos culturais e promovia um modo supostamente superior de executar a performance artística. Tito Lívio, portanto, no século I AEC, já refletia sobre os processos de transculturação e criava uma narrativa imperialista a respeito da apropriação de outras culturas. Roma, como sabemos, dominou e congregou uma série de diferentes grupos; portanto, o estabelecimento de um discurso que criasse a ideia de superioridade era necessário. Veja que os etruscos não tentam imitar os romanos, marcando uma distinção entre a identidade dos dois povos. O romano era capaz de fazer o que os outros faziam, mas o contrário não era verdade, de acordo com o texto mencionado. Isso trata de uma avaliação do cenário político da Antiguidade; peço licença para fazer um salto inadequado de milênios agora.

O imperialismo não é uma tendência exclusiva do capitalismo, mas é necessário, na forma criada pelo capitalismo, para que esse modo de produção continue a existir (LÊNIN, 2011, p. 132). É claro que é possível imaginar semelhanças entre os imperialismos de hoje e da Antiguidade; principalmente no que diz respeito à imposição de valores culturais. Uma das maiores distinções, contudo, é o que o capitalismo oferece para as condições de produção de um discurso: é oferecido aos nossos discursos na contemporaneidade a possibilidade de se espalharem em uma velocidade avassaladora, de forma que as fronteiras culturais tornam-se cada vez mais fluidas.

Foto de Mineragua Sparkling Water

Um grande exemplo de como isso ocorre é o Ukelele. Esse instrumento, cuja origem frequentemente é atribuída ao Havaí, vem sendo popularizado (principalmente em setores da classe média), ainda que pouco seja falado sobre a história do instrumento e do Havaí. A autora Haunani-Kay Trask (1993, pp. 2–3) explicita como a cultura dos havaianos nativos é apropriada pelos estadunidenses de forma a causar tanto uma violência psicológica, roubando as expressões de afeto do cotidiano, como aloha, e utilizando-as para uma função mercadológica, colocando-a em anúncios de carros ou em lojas. O Havaí foi dilacerado e sob suas terras sagradas, seus templos e suas ilhas, a militarização do Tio Sam construiu condomínios de luxo, fortalezas e shopping, comercializando a cultura local em forma de turismo e produtos que são uma cópia barata da memória dos nativos.
O ukelele, contudo, foi desenvolvido por imigrantes portugueses e, ainda assim, como dito por Tranquada e King (2012, p. 5), é tratado como um instrumento nativo ou como um símbolo icônico do Havaí. Construiu-se um discurso, portanto, que substituiu a música local havaiana por uma invenção alheia, algo que Trask (1993, p. 26) chama de desaparecimento planejado. O fato de o ukelele ser difundido como elemento nativo havaiano cria a ilusão de que nossa cultura ocidental contempla a desses grupos — o que seria mentira mesmo que o ukelele fosse de fato havaiano, pois ele é usado muito mais para covers de músicas estadunidenses ou inglesas do que para a reprodução da cultura local do Havaí. É quase como se o discurso fosse similar ao de Tito Lívio: “nós imitamos perfeitamente e melhoramos”. Não! Não imitou, não foi perfeito e apenas criou uma mistura cultural voltada para o turismo. Quando alguém vai ao Havaí, a pessoa vai ESPERANDO ouvir um Ukelele. Assim, as ilhas deixaram de ser um espaço diverso com vários grupos nativos com suas particularidades idiomáticas e identitárias para acabarem se tornando um espaço paradisíaco possível para o capitalismo. Quando se toca o ukelele, resumindo a música havaiana a ele e utilizando-o para tocar os “best hits” da música dos Estados Unidos, fortalece-se o discurso de que o ocidente conseguiu apropriar-se da cultura alheia e usá-la ao seu bel prazer.

Como sempre falo em meus textos, não sou especialista no assunto e sempre convido a quem quiser discordar de mim; afinal, um discurso está sempre disputando com outros. E desculpa pela salada de frutas teórica; tomo liberdade de fazer esse tipo de coisa aqui. Esse texto não teve nenhuma pretensão de censurar quem toca ukelele. Apenas tentei promover uma discussão crítica sobre a relação que esse instrumento tem conosco e como ele pode ser uma ferramenta de fortalecimento discursivo da dominação.

Referências:

LÊNIN, Vladimir I. O imperialismo: etapa superior do capitalismo. Campinas: FE/Unicamp, 2011.

LIVY. History of Rome. Edited and translated by Benjamin Oliver Foster. London: Harvard University, 1919.

MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos. Trad. Sírio Possenti. Curitiba: Criar edições, 2005.

TRASK, Haunani-Kay. From a Native Daughter: Colonialism and Sovereignty in Hawai‘i. Honolulu: University of Hawai’i, 1993.

TRANQUADA, Jim; KING, John. The Ukulele: A History. Honolulu: University of Hawai’i, 2012.

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